sexta-feira, 22 de abril de 2022

Joana Santos e o “Ti Manel do tarro”



Ti Manel do Tarro (1922). Joana Santos (1978-  ). 

É sabido que de há largos anos a esta parte, sou coleccionador e estudioso da Arte Pastoril Alentejana. Quer daquela que saiu das mãos de criadores anónimos, como da criada por aqueles que tendo saído do anonimato, me concederam a prerrogativa da sua amizade. Foi o caso do veirense Roberto Carreiras (1930-2017), com quem tive o privilégio e o prazer de privar, bem como com sua esposa Rosa Mariano Machado, no decurso das Feiras de Artesanato em Estremoz.
Roberto Carreiras partiu há 5 anos, completados no transacto dia 8 de Janeiro. No elogio fúnebre (*) que lhe fiz na altura do seu falecimento, disse: “Pessoalmente, orgulho-me de as minhas colecções de Arte Pastoril integrarem especímenes afeiçoados pelas suas mãos, que comandadas pela sua alma de visionário, nunca se renderam à rudeza do uso do cajado e do mester de vaqueiro. Foram mãos hábeis que aliadas a um espírito sensível, conseguiram filigranar e esculpir os materiais com mestria.”
Decorridos 5 anos, a barrista Joana Santos teve acesso a uma excelente fotografia de Isabel Borda d'Água, na qual figura Roberto Carreiras, sentado, a manufacturar um tarro de cortiça. De imediato, pensou em criar um Boneco de Estremoz, que perpetuasse no barro a actividade daquele lídimo representante da Arte Pastoril Alentejana. E se bem o pensou, melhor o fez, para gáudio daquele que viria a ser o seu felizardo destinatário, que como devem ter calculado fui eu.
“Ti Manel do tarro” chamou a barrista à sua criação. Ora, Manuel é um nome bastante comum no Alentejo, pelo que ao cognominar a figura com aquele epíteto, a barrista regionaliza a sua criação, que assim transcende a figuração de Roberto Carreiras e ascende à condição de representação generalista dum mesteiral de Arte Pastoril Alentejana.
Fascinado pela obra da barrista, dei-lhe conta desse meu estado de espírito, através da presente missiva:
"Joana:
O “Ti Manel do tarro” está uma maravilha das maravilhas. É um monumento e simultaneamente um hino à matriz identitária da Arte Popular Alentejana. Digo hino, porque para deleite de espírito, da figura que criou, flui o cante da Alma Alentejana. A mesma alma que conjuntamente com as suas mãos benditas, perpetuou no barro a figura icónica do meu grande amigo, o veirense Roberto Carreiras, uma referência eterna da Arte Pastoril Concelhia.
Bem-haja Joana, por toda a beleza que vem criando e connosco partilha."


(*) – MATOS, Hernâni. Roberto, guardador de vacas e artista popular. [Em linha]. Disponível em:





Roberto Carreiras (1930-2017). Fotografia de Isabel Borda d'Água.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Jorge da Conceição e o Porteiro do Céu

 

Fig. 1 - São Pedro (1984). Jorge da Conceição (1963-  ).

A aparição de São Pedro
As horas são como as cerejas. Atrás de uma vem sempre outra. E foi assim que em Outubro passado, já a desoras, ainda me encontrava vigilante no meu posto de pescador à linha, a ver aquilo que conseguia pescar na internet. Já não me lembro da palavra chave que naquela altura utilizei como engodo no motor de busca do OLX. O que é verdade, é que fui surpreendido pelo aparecimento de “peixe graúdo”.
Tratava-se de uma imagem de São Pedro (Fig. 1), de grandes dimensões, identificada como “Boneco de Estremoz” e que na base ostentava a marca manuscrita “Jorge Conceição / Palmela 1984” distribuída por duas linhas, ladeada à esquerda e um pouco mais abaixo pelo carimbo “ESTREMOZ / PORTUGAL” (2 cm x 0,8 cm), distribuído igualmente por duas linhas. Trata-se de uma marcação (Fig. 2), que por desconhecimento meu não foi inventariada nas págs. 81 e 85 do meu livro (1). Se em 2018, à data de edição do livro, podia dizer “Quem dá o que tem, a mais não é obrigado”, na actualidade impõe-se o preenchimento da lacuna, do que aqui dou conta para usufruto do leitor.
A figura, da autoria do prestigiado barrista Jorge da Conceição Palmela, fora criada há quase quarenta anos, na sua primeira fase de produção. De imediato, contactei o vendedor, revelando o meu interesse na sua aquisição e solicitando o envio de coordenadas bancárias, visando o pagamento do item pretendido. O vendedor respondeu-me na manhã seguinte e eu de imediato, efectuei o respectivo pagamento. O inesperado “achado”, dada a sua natureza, ocupa um lugar de destaque e muito especial na minha colecção.

Onde se fala da sorte
Quem soube do sucedido, logo me disse:
- És um homem de sorte!
E eu repliquei sempre:
- Qual sorte, qual carapuça!
Não fosse eu um internauta persistente, com a mente povoada de sonhos e a ânsia de descobrir o que há para ser descoberto e nunca teria tido a sorte que me atribuem. De resto, a nossa tradição oral regista os provérbios: "Cada qual é artífice da sua sorte." e "A sorte ajuda os ousados." Mas houve quem continuasse:
- Isso são provérbios. O que é um facto, é que és um homem de sorte!
Bom. Aqui comecei a ficar com os azeites. Então o meu trabalho de pesquisa persistente não valia nicles? E vá daí, pus-me a pescar por aí, o que diz o pensamento ocidental acerca da sorte e respiguei as seguintes afirmações: “A sorte sorri aos fortes” (2); “A sorte ajuda os audazes” (3); “A diligência é a mãe da boa sorte” (4); “Acredito muito na sorte; verifico que quanto mais trabalho mais a sorte me sorri” (5), “Creio muito na sorte. Quanto mais trabalho, mais sorte pareço ter” (6); “A sorte não existe. Aquilo a que chamais sorte é o cuidado com os pormenores” (7); “A sorte marcha com aqueles que dão o seu melhor” (8); “A seguir ao trabalho duro, o maior determinante é estar no sítio certo à hora certa” (9).
Municiado com estes nobres pensamentos, procurei um a um, os meus opositores, fervorosos adeptos da sorte e disparei-lhos em frases seguidas, mesmo à queima roupa. E perguntei-lhes depois:
- E então? Continuam a acreditar na minha sorte?
Não houve um único que tivesse a coragem de me dizer que sim. Creio que alguns ficaram mesmo convencidos que eu tinha razão. Mas outros, adeptos das crenças cegas, lá no fundo continuaram a pensar que não. Todavia, não arranjaram argumentos para me fazer frente e “fecharam-se em copas”.

Jorge da Conceição visto à lupa
Como refiro no meu livro (1), “Tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano de Jorge da Conceição e desde essa época que o vejo como um perfeccionista que procura dar o melhor de si próprio em tudo aquilo que faz, o que se reflecte não só na concepção como nos acabamentos das figuras que modela.”. No livro dei conta de que Jorge da Conceição é “… filho da barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), neto dos barristas Mariano da Conceição (1903-1959) e Liberdade da Conceição (1913-1990) e sobrinho de Sabina da Conceição Santos (1921-2005), irmã de Mariano.”. E concluí: ”Filho e neto de peixes sabe nadar, pelo que Jorge da Conceição estava condenado a ser barrista, tomando contacto com o barro desde criança e criando apetência pela manufactura de Bonecos como via fazer à avó e à mãe. Foi assim que aprendeu as técnicas e a arte de modelar o barro, manufacturando Bonecos enquanto estudava, até à idade de 21 anos”, quando frequentava no Instituto Superior Técnico, o Curso de Engenharia Electrónica e de Computadores – Variante de Electrónica e Telecomunicações. A imagem de São Pedro de Jorge da Conceição, datada de 1984, pertence à parte final da sua primeira fase de produção, já que ele decidiu interromper a sua actividade como barrista, para só a retomar em 2013, após uma carreira profissional na área de consultoria que durou 25 anos e o manteve afastado da modelação do barro. Todavia, a chamada do barro, que transporta na massa do sangue, levou-o em 2013 a dedicar-se exclusivamente à barrística.
Jorge da Conceição participou em 1983 e 1984, na I na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz. Foi nesta última que alguém comprou a imagem que hoje é minha. Na altura, eu não lhe comprei nada, pois o dinheiro não era muito e eu andava fascinado, como hoje ainda ando, pelo trabalho de sua avó, Liberdade da Conceição, que tal como sua mãe e ele próprio, me concedeu o privilégio da sua amizade. De sua avó, tenho na minha colecção um bom núcleo de figuras, com especial destaque para imagens de Santo António, São João Baptista e São Pedro, qualquer delas de grandes dimensões.

Felicitações de Jorge da Conceição
Quando soube da minha “pescaria”, Jorge da Conceição felicitou-me vivamente pela aquisição da imagem, já que são escassas as peças dessa época na posse de coleccionadores. Disse-me ainda que na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz, para além de algum “peixe miúdo” à disposição do público, tinha ainda para vender as imagens de Santo António, São João Baptista, São Pedro e São Marçal, das quais vendeu apenas as duas últimas, que integram neste momento a sua colecção. Com o regresso do seu São Pedro à terra mãe, é caso para reconhecer de uma forma proverbial que “O bom filho a casa torna”.

BiMestre Jorge da Conceição
Em 2019 teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, um Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz. A formação da componente técnica do Curso foi liderada por Jorge da Conceição, que contou com o apoio inestimável de Isabel Água e de Luís Parente. Ali se formou um grupo de barristas, os quais se encontram presentemente a produzir. São eles: Ana Catarina Grilo, Inocência Lopes, Joana Santos, José Carlos Rodrigues, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Manuel J. Broa, Sara Sapateiro, Sofia Luna e Vera Magalhães. Todos eles o reconhecem como uma referência de topo da nossa barrística e praticamente todos o tratam carinhosamente por Mestre, já que foi com ele que aprenderam.
As criações de Jorge da Conceição ostentam marcas identitárias singulares e por isso notáveis. Em primeiro lugar, o rigor e a perfeição na modelação, com integral respeito pelas proporções, pela morfologia, pelas texturas, bem como a representação do movimento. Em segundo lugar, um cromatismo harmonioso que resulta de uma sábia combinação de cores. Tudo isso contribui para que os trabalhos de Jorge da Conceição sejam reveladores da sua incomensurável mestria. Trata-se de facetas do seu trabalho, que ultrapassam o âmbito restrito dos seus formandos e catapultam o barrista a uma nova dimensão de Mestre. Daí eu ter assumido a iniciativa terminológica de o considerar um biMestre. De resto, tenho de lhe agradecer o prazer que me dá em usufruir do deleite de espírito causado pela visualização dos seus trabalhos. Daí que lhe confesse: Jorge,

De si é sempre admirável,
toda e qualquer criação.
Tudo o que faz é notável,
Mestre Jorge Conceição.

Oração a São Pedro
Senhor São Pedro, Pescador, Apóstolo, 1.º Bispo de Roma, 1.º Papa e Mártir, já que sois Porteiro do Céu, atrasai a abertura das portas da abóbada celeste, para que eu me possa libertar da culpa de há cerca de 40 anos não ter comprado Bonecos de Mestre Jorge da Conceição. Dai-me mais uns anos bons, para que eu possa preencher as muitas lacunas que ainda tenho na minha colecção. Amém.

(1) – MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018.
(2) - Terêncio (185 a.C.-159 a. C.), poeta romano
(3) - Virgílio (70 a.C-19 d.C.), poeta romano
(4) - Miguel de Cervantes (1547-1616), romancista espanhol.
(5) . Thomas Jefferson (1743-1826), estadista norte-americano.
(6) - Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor norte-americano.
(7) - Winston Churchill (1874-1965), estadista inglês.
(8) - Horace Jackson Brown Jr. (1940-2021), romancista americano.
(9) - Michael Bloomberg (1942- ), magnata norte-americano.

Publicado em 20-04-2022


Fig. 2 - Marcação no interior da peanha da imagem de São Pedro. 

Fig. 3 - Jorge da Conceição em 1985.

domingo, 17 de abril de 2022

Eu e a olaria de Estremoz


Garrafão

Pontos nos ii
A olaria de Estremoz, extinta com a morte de Mário Lagartinho em 2016, é há muito, objecto das minhas preocupações, as quais tenho partilhado com os leitores, desde a criação deste blogue em 2010. Em 2016, lancei o alarme mais forte de todos, mas não fizeram caso do que eu disse e redisse, alegando que havia outro projecto em carteira. Decorridos todos estes anos, está a decorrer finalmente e por módulos, um Curso de Olaria em Estremoz, numa parceria do Município com o CEARTE. É do conhecimento público que os resultados estão a superar as expectativas, o que muito me congratula. A minha expectativa agora é só uma: saber quem é que vai continuar a Arte, depois de ter terminado o Curso.
Entretanto, como estudioso e coleccionador de longa data de peças oláricas de Estremoz, entendo que é chegada a altura de tocar trombetas e motivar ainda mais as pessoas para a nossa olaria. Este texto deve assim ser encarado como um pontapé de saída nessa direcção.

Tipologia
É diversificada a tipologia das peças oláricas de Estremoz. As principais são: Assadores, Barris, Bilhas, Cafeteiras, Cântaros, Cantis, Cinzeiros, Copos, Fogareiros, Garrafas, Jarras, Mealheiros, Medalhas, Moringues, Palmatórias, Pratos, Púcaros, Reservatórios, Troncos, Vasos de flores, etc.

Morfologia
A uma dada tipologia podem corresponder várias morfologias. Assim um moringue pode ter um corpo ovóide, esferóide, cilindróide segundo a vertical ou a horizontal, bem como qualquer outra forma distinta das anteriores.

Dimensões
Em geral, uma peça olárica de determinada tipologia e com uma dada morfologia, existe em vários tamanhos, numerados a partir do 1, número que corresponde ao mais pequeno. Este número pode aparecer gravado na base da peça ou aí marcado a giz, depois da cozedura ou então nem sequer ter sido marcado.

Proporções
É óbvio que as proporções entre as 3 dimensões de qualquer peça olárica no seu todo ou entre os seus componentes, não é arbitrária. São proporções que os oleiros de várias gerações foram perpetuando no barro, após a magia das suas mãos as ter tornado harmoniosas.

Tipos de decoração
Os tipos de decoração utilizados nas peças oláricas de Estremoz são de seis tipos principais:
1 - O empedrado, no qual meniscos convexos de argila, decorados com minúsculos fragmentos de quartzo, são colados com barbutina à peça;
- 2 - O riscado, que recorre a sulcos gravados na superfície, com recurso a um teque, um arame, um prego ou uma sovela;
- 3 - O picado, que utiliza formas geométricas que são gravadas na superfície por percussão de objectos cuja secção tem uma determinada geometria, como é o caso dos invólucros de bala e dos cartuxos de caça;
- 4 - O polido, que utiliza o contraste entre a superfície baça e os motivos que foram polidos com recurso a um seixo ou a um teque;
- 5 - A fitomórfica e/ou zoomórfica, na qual folhas, bolotas, ramos de sobreiro e/ou animais, são moldados em barro e colados com barbutina à superfície;
- 6 - A relevada, na qual brasões de Estremoz ou outros, bem como inscrições como “RECORDAÇÃO DE” ou “LEMBRANÇA DE”, são moldadas em barro e colados com barbutina à superfície;
Para além disso são conhecido exemplares que ostentam uma decoração obtida pela utilização conjunta de alguns dos tipos referidos de 1. a 6. Assim:
- 7 - Empedrado e riscado;
- 8 - Empedrado e picado;
- 9 - Empedrado, riscado e picado;
- 10 - Empedrado, riscado e relevado;
- 11 - Empedrado, picado e relevado;
- 12 - Empedrado, riscado, picado e relevado;
- 13 - Fitomórfica e/ou zoomórfica e polido;
- 14 – Fitomórfica e/ou zoomórfica, relevado e polido;
Por aqui se vê a diversidade e logo a riqueza da decoração das peças oláricas de Estremoz. Essa diversidade verifica-se também ao nível da decoração fitomórfica/ e ou zoomórfica e da decoração relevada, já que esta não é igual em olarias distintas, bem como na mesma oficina pode ter sido obtida por moldes diferentes, além de que estes podem ter sido substituídos por outros no decurso do tempo, devido a desgaste ou por questões meramente estéticas.

Funcionalidade
A funcionalidade das peças oláricas de Estremoz é predominantemente servirem de vasilhame para conter e transportar água, conter flores, dinheiro, velas, ou então servirem de elementos decorativos. Algumas funcionalidades deixaram de ser utilizadas, devido ao desenvolvimento tecnológico. É o caso dos tijolos, telhas, canos, sifões e manilhas.

Marcas
O levantamento das marcas de olaria de Estremoz é um trabalho que ainda está em curso. Até ao momento, eu já dei o contributo que me foi possível, inventariando três marcas da Olaria Alfacinha, em uso nos anos 30 do século passado, as quais foram caracterizadas pela primeira vez no meu artigo “Medalhas de barro de Estremoz”, publicado no meu blogue em 12 de Novembro de 2012. Também em 21 de Fevereiro de 2013, publiquei no meu blogue o artigo “Nova marca de olaria de Estremoz”, no qual inventariei e caracterizei uma marca de olaria, usada nos anos 30 do século passado, na Escola Industrial António Augusto Gonçalves. É um trabalho que precisa urgentemente de ser continuado, o que pela minha parte, farei assim que me for possível.

Estética
A meu ver, a estética das peças oláricas de Estremoz é determinada por quatro factores distintos, mas de igual importância: o cromatismo vermelho do barro, aliado à morfologia, às proporções e à decoração. É da conjugação desses factores, sabiamente combinados, que resulta a excelência da beleza das peças oláricas de Estremoz.

Património Cultural Imaterial
À semelhança dos Bonecos, também a olaria de Estremoz apresenta marcas identitárias locais, muito próprias e constitue Património Cultural Imaterial do Concelho de Estremoz, pelo que urge que seja classificada como sendo de interesse municipal. A partir daí, logo se vê.

Ponto final
Os meus votos sinceros são os de que este artigo tenha sido útil a todos aqueles que me lêem. Se assim for, congratulo-me com tal facto e prometo voltar ao assunto.

 Hernâni Matos

Assador de castanhas

Bilha

Bilha com tampa

Cafeteira

Cafeteira

Cafeteira

Cântaro

Cantil

Copo

Fogareiro

Garrafa

Garrafa

Garrafa


Ânfora

Jarra de flores

Jarra de flores

Jarro

Medalhas

Moringue

Moringue

Moringue

Prato

Prato

Púcaro 

Púcaro

Púcaro

Reservatório

Tronco

Vaso


Vaso de suspensão

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Presépio de Carlos Alves


Presépio (2022). Carlos Alves (1958-  ).

Eis uma Sagrada Família, representada de um modo formal em termos da iconografia habitual dos presépios de Estremoz. Todavia, o pai terreno de Jesus não empunha a costumada acuçena, símbolo da pureza, preferindo ter a mão direita sobre o peito, enquanto na mão esquerda empunha um pequeno bordão, como para proteger o filho. Para além disso, a Sagrada Família está representada num contexto alentejano, sugerido pelo cromatismo azul-vermelho dos ornatos da parede que se encontra em segundo plano. A cruz templária ostentada na parte superior da parede, entre os ornatos azuis e vermelhos, parece querer simbolizar a fé em Deus e a protecção divina. No centro da parede, encontra-se uma Capela, onde um anjinho anda de baloiço, como se festejasse o nascimento do Menino, ideia que é reforçada pela alegria sugerida pelos vasos floridos que ornamentam a parede, de cada um dos lados da Capela. Tudo parece dizer:
- É DIA DE FESTA. NASCEU JESUS!
A meu ver, o barrista soube combinar na sua representação, o sagrado e o profano de uma forma harmoniosa, que tornam a sua criação num hino à alegria.
Poderá haver outras interpretações. Lá diz o rifão: "Cada cabeça, sua sua sentença", o que significa que a percepção das coisas, nem sempre é coincidente. Daí, que algumas pessoas, entre as quais eu me situo, visando minimizar o erro, procurem ter e transmitir aos outros, uma visão multifacetada das coisas. Assim, não se arregimenta ninguém. O leitor fica sempre com liberdade de escolha entre uma visão mono-focal ou mutifacetada do mundo e da vida.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 13 de Abril de 2022

sábado, 9 de abril de 2022

Mestre Álvaro Chalana e os amores-perfeitos

 



Os amores-perfeitos como motivo decorativo
Os amores-perfeitos são flores usadas com frequência por Mestre Álvaro Chalana na decoração das suas peças oláricas, em particular no fundo dos pratos e por vezes nas abas. Uma tal decoração é esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, usada tradicionalmente na cerâmica redondense.

O cromatismo dos amores-perfeitos
A escolha daquelas flores como motivo decorativo, terá sido, porventura, resultado de elas serem flores que dão alegria e cor onde quer que estejam: na natureza ou em casa.
As flores são grandes e achatadas, formadas por cinco pétalas aveludadas e arredondadas, quatro superiores, distribuídas par a par e uma inferior, sustentadas por um pedúnculo carnudo e ligeiramente comprido que se insere na planta ao nível das axilas foliares.
Existe um grande número de variedades de amores-perfeitos, com flores de muitas cores e que variam entre amarelo, azul, roxo, branco, rosa e bordeaux. As combinações são muitas e dão origem a um grande número de padrões, geralmente tricolores, mas também bicolores e monocolores ou até mesmo tetracolores.

O simbolismo do amor-perfeito
O simbolismo do amor-perfeito resulta basicamente de as suas pétalas serem em número de 5. Vejamos porquê. Por um lado, o 5=2+3 é a soma do primeiro número par (2) e do primeiro número ímpar (3). Por outro, está no meio dos nove primeiros números. Segundo os pitagóricos é um número nupcial, resultado do casamento do princípio masculino “céu” (3) e do princípio feminino “terra” (2). O 5 é assim símbolo de união, de harmonia e de equilíbrio. Por outro lado, o 5 é também o símbolo do homem, o qual de braços abertos, parece disposto em 5 partes em forma de cruz: os dois braços abertos, o busto (o centro, abrigo do coração), a cabeça e as duas pernas. O 5 é ainda o símbolo do Universo: dois eixos, um vertical, outro horizontal, passando por um mesmo centro. O 5 é assim símbolo da ordem e da perfeição.
Em suma: o amor-perfeito é símbolo de união, de harmonia, de equilíbrio, de ordem e de perfeição. Representa também o homem pelo que lhe é próprio: pensar. O amor-perfeito é assim a flor escolhida para simbolizar a meditação e a reflexão.

Cancioneiro popular
A perfeição do amor-perfeito não inibe o cancioneiro popular alentejano de lhe apontar defeitos. Assim: “Amor-perfeito não dura, / É impossível durar. / Eu tenho um amor perfeito / Que dura até se acabar.“ e ainda: “Amor-perfeito não cheira, / É mais a vista que faz. / Meu amor não é bonito.”, / Mas é muito bom rapaz.”

Culinária
Desde a antiguidade que as chamadas flores comestíveis são utilizadas como ingrediente culinário, disponibilizando uma vasta diversidade de formas, texturas, cores, sabores e fragrâncias, que comunicam alegria e distinção aos pratos. Os amores-perfeitos são um exemplo de flores comestíveis, usadas para enfeitar saladas de vegetais ou de frutas, bem como outras sobremesas e pratos.

Coloração
As flores de amores-perfeitos têm ainda sido usados no fabrico de corantes amarelo, verde e azul-esverdeado, enquanto as folhas são usadas para fazer um indicador químico.

Uma mensagem oculta
Os amores-perfeitos são comestíveis e enquanto flores transmitem colorido, factos que parecem subjacentes à sua utilização por Mestre Chalana na decoração dos pratos redondenses.

BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.

Hernâni Matos




segunda-feira, 4 de abril de 2022

Até que enfim, arranjei um tacho!


Tacho com tampa em louça vidrada de Redondo. Olaria desconhecida. 1ª metade do séc. XX.

Lá na vila do Redondo
Fazem-se pratos e tijelas:
Fazem-se telhas e adobinhos,
Alguidares e Panelas
(Cancioneiro Popular)

Apontado por não ter tacho
A minha vida é bem conhecida de todos, muito em especial pelo círculo próximo de amigos. Sabem por onde ando, sabem o que faço e sabem o que tenho ou não tenho. De tal modo que, de vez em quando, há alguém que se lembra de me dizer coisas do género:
- Oh, Hernâni! Tens quase tudo. Só te falta arranjar um tacho.
A minha resposta tem sido, desde sempre, invariavelmente a mesma:
- Dêem tempo ao tempo, que lá chegará a minha vez.
São trocas de palavras que remontam ao “Tempo da outra Senhora” e que não foram amordaçadas pelo 25 de Abril.

A aparição do tacho
Enquanto estive no activo, nunca fui capaz de arranjar um tacho, situação que não se modificou com a minha aposentação. Todavia, muito recentemente vi aquela condição alterada. Na verdade, com grande surpresa minha e quando não estava à espera, acabei por arranjar um tacho. Pensei imediatamente nos amigos que de há muitos anos a esta parte, me vêm massacrando com a sacramental pergunta:
- Hernâni! Quando é que arranjas um tacho? Olha que o tempo está a passar.
De imediato, disse para comigo mesmo:
- Hernâni! Tu que és acusado de ser parco em palavras, tens que te mostrar pródigo nelas e dizeres-lhes das boas.
Foi tiro e queda, que é como quem diz, dito e feito. Quando a minha tertúlia de amigos se voltou a juntar, alguém disparou:
- Então, Hernâni, já conseguiste arranjar um tacho ou não?
Como devem calcular, ficaram varados quando eu atroei os ares com um estrondoso e sonoro:
- Já cá canta!
Fui, de imediato, aclamado pelos meus amigos, o que me levou a agradecer-lhes com a mão direita no coração. Simultaneamente, todos quiseram saber qual era o meu tacho, pelo que tive de os acalmar, dizendo-lhes:
- Antes de vos dizer qual é o meu tacho, têm de ouvir um pequeno discurso que preparei para esta memorável ocasião, o qual intitulei “Discurso do tacho”. Passo de imediato a proferi-lo.

Discurso do tacho
Caros amigos:
Vocês sabem que a palavra “tacho” pode ser encarada sob vários prismas? Segundo determinada óptica, “tacho” corresponde a “lugar rendoso”, associado a uma “posição social privilegiada com benesses". Para além disso, “ter um bom tacho” é sinónimo de “ter um emprego bem remunerado”. Todavia, “tacho” pode ser a designação atribuída, quer à “cara”, quer à “cabeça“. Paralelamente, “tacho” é uma denominação outorgada, tanto à “cozinheira” como à “refeição”. Por isso, “dar para o tacho” equivale a “dar para a comida”. “Tacho” era ainda, antes do 25 de Abril, o epíteto atribuído à famigerada “Polícia de Vigilância e Defesa do Estado”. Já “tacho areado” é alcunha concedida a “pessoa de pele avermelhada e cabelo ruivo”. Por outro lado, o diminutivo “tachinho” designa “barrete pequeno e redondo, usado pelos alunos do Colégio Militar e pelos Pupilos do Exército”. Quanto a “tachola” designa indistintamente “dente incisivo muito grande” ou “prego de tamanco”.
Já que falei em “tacho”, por uma questão de igualdade de género, tenho de falar em “tacha”, denominação aplicável a qualquer “dente”. Daí que o plural “tachas” designe “dentadura”, pelo que “mostrar a tacha” é “mostrar os dentes” e “arreganhar a tacha” é rir”.
Concomitantemente “tacha” é a designação atribuída a “prego pequeno de cabeça chata” ou a qualquer “nódoa”. Daí que “pôr tacha em…” seja “apontar defeitos a…”. Finalmente “tachada” é “bebedeira” e “tachar” é “embebedar”.
Caros amigos:
Se calhar já estão fartos de me ouvir falar de: “tachos”, “tachinhos”, “tacholas”, “tachas, “tachadas” e “tachar”. Não vos serve de nada, já que estou a ser maçador de uma forma propositada. E sabem porquê? Para me fazer pagar de todo o tempo que me tomaram, quando me andaram a atazanar os ouvidos, perguntando continuamente quando é que arranjava um tacho. Todavia, podem ficar descansados que eu não abalo daqui sem vos revelar qual é o meu tacho. E mais: vou mostrar-vos já o tacho!

A revelação do tacho
Não dei tempo a que ninguém dissesse nada e de rompante abri uma pequena mala de mão, donde retirei e exibi o tacho que esteve na origem de todo este imbróglio, o qual passei de imediato a descrever:
- Pequeno tacho, rodado, com tampa, em barro de Redondo, de tonalidade vermelha e vidrado. A base é circular e plana. O corpo é cilíndrico, mais largo que alto e o bordo é arredondado. Abaixo do bordo estão dispostas duas pegas, de secção rectangular, em forma de U com grande abertura e pequena altura, colocadas em posições diametralmente opostas. A superfície interior do tacho, o bordo e a metade superior da superfície exterior, receberam engobe amarelo palha, o mesmo se passando com o interior e o bordo da tampa. O engobe amarelo recebeu alguns salpicos verdes, distribuídos irregularmente.
E prossegui:
- Ficam deste modo a saber qual foi o tacho que arranjei como coleccionador de cerâmica redondense. Se estavam à espera de outra coisa, enganaram-se redondamente. Todavia, já tenho um tacho que dá para vocês me deixarem de estar a atormentar continuamente com o mesmo assunto. E sabem uma coisa? Apesar de o tacho ser pequeno, vocês acabam de comer pela medida grande!
Dito isto, todos os meus amigos ficaram mansos, sem, todavia, deixarem de me aclamar. Dentre eles, houve um que interpretando o sentimento dos outros, proclamou:
- A partir de hoje, ninguém mete o nariz no tacho dos outros. Cada um fica com o seu. Tacho, é claro.
E a tertúlia foi dada por encerrada.

Pergunta aos leitores
- Digam-me lá se mereceu a pena ou não, esperar pelo meu tacho estes anos todos? É claro que mereceu. É que eu sou paciente e “quem procura sempre alcança”.

BIBLIOGRAFIA
LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
POMBINHO JÚNIOR, J.A. – Achegas para o Cancioneiro Popular Corográfico do Alto Alentejo in ALTO ALENTEJO II. Junta de Província do Alto Alentejo. Évora, 1957.
SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.




sexta-feira, 1 de abril de 2022

Cerâmica redondense personalizada

 

Fig. 6 - Amália. Bacia de grandes dimensões. Ti Rita (1891-1974).

Preâmbulo
A clareza e o rigor na transmissão do presente texto, exige que precise a etimologia e a semântica de um vocábulo nele usado. A palavra “personalizar”, provém do étimo latino “personãle”, de “persona“ (pessoa). Trata-se de um verbo transitivo que sob o ponto de vista semântico pode ter vários significados: 1 - Tornar pessoal; 2 - Designar pelo nome; 3 - Dar carácter original a um objecto fabricado em série; 4 - Adaptar às preferências ou necessidades do utilizador. No âmbito do presente texto, o termo “personalizar“ deve ser entendido como sendo possuidor dos dois últimos significados.

Personalizar para relevar
As diversas tipologias oláricas redondenses encontram-se muitas vezes personalizadas, o que tanto pode ter acontecido, quer a pedido de clientes quer por iniciativa dos oleiros. Uma tal personalização manifesta-se na decoração da peça cerâmica sob a forma de antropónimos ou figuras antropomórficas que representavam ou supostamente pretendiam representar alguém, tanto da comunidade local como figura pública de âmbito histórico ou do panorama artístico nacional.
A personalização era esgrafitada e pintada, o que podia ser feito de duas maneiras: 1 – Sem recurso a figuras antropomórficas (bustos ou figuras de corpo inteiro), mas utilizando nomes próprios simples (Fig. 1), nomes próprios compostos (Fig. 2), nome e sobrenome (Fig. 3) e nome completo, ainda que abreviado (Fig. 4). 2 – Com recurso a figuras antropomórficas, as quais podem (Fig. 5) ou não (Fig. 6), ser acompanhadas do nome ou nomes (Fig. 7) das personagens perpetuadas no barro.
A personalização da cerâmica redondense é relativamente vulgar em pratos, alguidares, bacias, tigelas, saladeiras e também aparece em barris e cantarinhas, aparentemente com menor frequência.

Consequências da personalização
A personalização “sui generis” da cerâmica redondense é uma das muitas características que a valorizam em relação a outras cerâmicas de índole popular. Na verdade, uma tal personalização faz com que as peças deixem de ser anónimas por um dos seguintes motivos:
1 - Revelam-nos quem é o(a) utilizador(a) / proprietário(a), o(a) qual poderá afirmar coisas do género: “Este prato é meu” ou “Esta tigela é minha”. Neste sentido, a personalização de uma peça olárica transformou-se numa marca de posse, equiparável a um ex-líbris aposto por um bibliófilo num livro da sua biblioteca. 2 - Ao exaltar uma figura pública que anda na berlinda ou está na ribalta e tem admiradores, a personalização potencia o interesse que desperta junto do público, já que adquire ela mesmo uma notoriedade própria, corolário natural da notoriedade da figura pública que ela imortaliza no barro.

Eu e a personalização
Sou apreciador de exemplares oláricos redondenses antigos, os quais na época cumpriram a sua missão: associar-se de uma maneira bijectiva aos seus utilizadores / proprietários ou então imortalizar no barro, figuras gratas à comunidade e nas quais esta se revê. Por um motivo ou pelo outro, são merecedores te todo o meu apreço, pelo que ocupam um lugar de destaque na minha colecção.

BIBLIOGRAFIA
- HOUAISS, António e al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 6 vol. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.
- MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (5ªedição). 5 vol. Livros Horizonte. Lisboa, 1989.
PERSONALIZAR, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021. Disponível em https://dicionario.priberam.org/personalizar [consultado em 01-04-2022].

Fig. 1 - Inscrição "JACINTO". Prato covo de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 2 - Inscrição "Maria Izabel". Saladeira de médias dimensões.
Olaria desconhecida. Data desconhecida.

Fig. 3 - Inscrição "viulante ventura". Bacia de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 4 - Inscrição “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Borracha.
Olaria F. R. Cte, 1941.

Fig. 5 - Inscrição "MANUEL DOS SANTOS". Bacia de grandes dimensões.
Mestre Álvaro Chalana (1916-1983). 

Fig. 7 - Inscrições "BENFICA", "CARLOS MANUEL" e "RUI AGUAS".
Olaria desconhecida. Data desconhecida.