terça-feira, 12 de outubro de 2021

Monumento nacional demolido em Estremoz para dar lugar a hotel de charme

 

O edifício situa-se na encosta escarpada da colina de Estremoz.

Reportagem de CARLOS DIAS transcrita com a devida vénia do jornal PÚBLICO de 11-10-2021, com autorização do seu director MANUEL CARVALHO, a quem o autor do blogue, reconhecidamente agradece. 

O edifício foi abandonado nos anos 30 do século passado e chegou a 2021 reduzido à fachada principal, derrubada em Abril. Será reconfigurada com os elementos que a constituíam, no projecto assinado por Siza Vieira e Carlos Castanheira.

 

Com o arranque, no mês de Abril, das obras de adaptação de um conjunto de antigos edifícios abandonados, entre eles a “Casa do Alcaide-Mor”, que é monumento nacional desde 1924, para dar lugar a um hotel de charme e várias habitações turísticas, com a designação de villas, fica encerrado um conturbado processo iniciado em 2016.

No entanto, a polémica persiste. Vítor Cóias, especialista na requalificação e reabilitação de património que privilegia a utilização de técnicas e materiais tradicionais, contesta opções do projecto que é assinado pelos arquitectos Siza Vieira e Carlos Castanheira. Na informação que prestou ao PÚBLICO, interroga-se: “Pode-se demolir um monumento nacional e substituí-lo por uma réplica com estrutura de betão armado?” E dá a resposta: “Pode, como se demonstra com a Casa do Alcaide-Mor da Cidadela de Estremoz.”

Ao fim de quase um século de abandono, em que sucessivos executivos municipais antes e depois do 25 de Abril contemporizaram com a progressiva degradação de um monumento nacional, nem a fachada, derradeiro testemunho do que foi a “Casa do Alcaide-Mor”, foi possível recuperar. No local das obras já estão montadas as armaduras e cofragens de pilares de betão armado, “aparentemente no plano das fachadas demolidas”, refere o especialista.

O edifício que foi a residência privada de D. Sancho de Noronha, alcaide-mor de Estremoz durante o século XV, mantinha a mais interessante fachada de arquitectura civil erguida na encosta escarpada da colina de Estremoz, a cerca de 80 metros da torre de menagem do castelo. Evidenciava vários estilos, tais como o mudéjar, o renascentista, o manuelino e o neoclássico. Destacavam-se as janelas da fachada frontal de estilo manuelino-mudéjar.

José Sádio, que será o próximo presidente da Câmara de Estremoz e é vereador no actual executivo, pelo PS, explicou ao PÚBLICO que o processo se tornou “irreversível”, mas que a fachada agora demolida será reposta. “Foi mapeada toda a estrutura, para que possa ser construída igual à que estava” e onde serão colocados todos os elementos que a caracterizavam. “Foram guardadas as cantarias para serem incorporadas na nova fachada”, referiu Vítor Cóias.

Em Abril de 2016, o então presidente da Câmara de Estremoz, Luís Mourinha, eleito na lista do Movimento Independente por Estremoz e que perdeu o mandato em Fevereiro de 2019 por ter sido condenado pelo crime de prevaricação, garantia ao PÚBLICO: a deliberação aprovada (em Março de 2016) pelo executivo municipal determina que a fachada da antiga casa “vai manter-se tal com está”. Mas, em Abril passado, acabou por ser demolida.

Projecto de milhões

A Casa do Alcaide-Mor de Estremoz foi adquirida em hasta pública por 180 mil euros pelo antigo presidente da Portucel e ex-administrador da EDP Jorge Godinho, que é sócio-gerente da empresa Barrocas Turismo e Lazer. Também comprou um conjunto de outros edifícios do mesmo quarteirão a particulares, desde a antiga Casa do Alcaide-Mor até à Capela da Rainha Santa Isabel. Na sua maior parte, estavam devolutos. O promotor teve de negociar apenas a saída de um residente que tinha feito obras no edifício que habitava.

Durante a apresentação do projecto da autoria de Siza Vieira e Carlos Castanheira, a 17 de Julho de 2019, Jorge Godinho adiantou que o empreendimento oferece, para além do hotel e das villas, “vários pátios, com espaços de lazer, e um patamar ajardinado junto à muralha” que permita a todos os hóspedes e visitantes frequentar uma zona de restauração na unidade hoteleira.

O conjunto das casas adquiridas a particulares vão funcionar como suítes, todas elas viradas para um hall central, e o projecto vai custar “vários milhões de euros”, refere o promotor, sem adiantar números precisos. Os hóspedes vão usufruir de todos os serviços do hotel.

O imóvel que se encontrava ao abandono desde a década de 30, e que chegou a ser um bordel, teve na sua génese as dificuldades de alojamento que D. Afonso V sentia sempre que se deslocava a Estremoz para caçar. A casa do alcaide-mor passou a albergar o monarca e a sua numerosa corte durante longos períodos, transformando-se em paço real, obrigando o alcaide-mor e a sua família a deslocarem-se para outro local.

É neste contexto que surge a necessidade de encontrar uma nova habitação para o alcaide-mor, que se materializa com a construção da casa onde vai surgir agora, no século XXI, um hotel de charme.

O edifício, que também é conhecido por Casa da Câmara medieval, terá acolhido o paço municipal, mas Túlio Espanca (historiador de arte e primo de Florbela Espanca) admite que esta funcionalidade “parece não ter muito fundamento”. Depois passou por momentos conturbados, quando a Câmara de Estremoz o colocou à venda numa criticada hasta pública.

Foi arrematado por John Ryan, cidadão irlandês em representação de Iris Holding Group, empresa dos Estados Unidos da América com sede num paraíso fiscal nos EUA e com sucursal na Praça Luís de Camões, em Estremoz, pelo preço de 279 mil euros. O cheque no valor de 10% do preço global da licitação (27.900 euros) foi depositado na conta do município de Estremoz, mas rapidamente se descobriu que estava sem provisão-

John Ryan foi notificado pela autarquia para, no prazo máximo de cinco dias úteis, proceder à regularização do cheque. Nada feito. Segue-se mais uma série de prorrogações para que regularizasse o pagamento da caução e é ameaçado com a possibilidade do município recorrer à via judicial para a cobrança em dívida, o que não surtiu qualquer efeito. Depois de várias insistências, Ryan mostrou-se apenas disponível para assinar “o que fosse necessário para a realização de nova hasta pública ou para a adjudicação do imóvel a quem fez a proposta imediatamente anterior à última efectuada” em hasta pública. A venda acabou por ser revogada.

Por fim, em Agosto de 2018 e em nova hasta pública, a Casa do Alcaide-Mor de Estremoz foi arrematada a Jorge Godinho, pelo valor de 180 mil euros, e as obras de reconversão do imóvel, que deveriam ter arrancadono início de 2020, começaram em Abril de 2021.

O edifício que foi a residência privada de D. Sancho de Noronha, alcaide-mor de
Estremoz durante o século XV, evidenciava vários estilos, tais como o mudéjar,
o renascentista, o manuelino e o neoclássico.

Fachada será reconstruída

Na reunião da Câmara de Estremoz realizada no dia 28 de Abril de 2021, os vereadores da oposição (PS) questionaram o presidente da autarquia pela falta de informação que está a envolver o projecto, alegando desconhecerem as razões que forçaram à demolição da fachada do edifício. Mesmo assim, esperam que o derrube da estrutura tenha sido feito “após um levantamento preciso para a sua reconstrução e de acordo com a imagem existente.”

O vereador José Trindade respondeu que foi efectuada uma “demolição/contenção da fachada com aproveitamento de todos os elementos necessários para a sua replicação”, tendo o processo sido precedido de um relatório prévio devidamente aprovado pelos Serviços de Arqueologia da Direcção Regional de Cultura do Alentejo.

Vítor Cóias diz que o projecto de Siza Vieira e Carlos Castanheira “‘turistifica’, mais do que requalifica, e contraria as intenções que vinham sendo manifestadas pelo município, que eram de criar um espaço aberto ao público, com uma utilização de índole cultural.”

Não foi possível obter esclarecimentos do presidente da Câmara de Estremoz, Francisco Ramos, nem da Direcção Regional de Cultura do Alentejo, sobre o assunto.


CARLOS DIAS

domingo, 10 de outubro de 2021

Parabéns, Benfica!

 

Bilha em barro vermelho de Estremoz. Decoração fitomórfica
e emblema do Sport Lisboa e Benfica no bojo.

Sou benfiquista desde que há 75 anos rasguei o ventre a minha mãe. Nascido em Estremoz, terra de barro que já foi de oleiros, há muito que guardo memórias da olaria. Como é o caso da presente bilha, decorada com elementos fitomórficos e que ostenta no bojo, o emblema do meu clube de eleição.
Com esta imagem mostro o meu regozijo pela eleição de Rui Costa como Presidente da Direcção do SLB, por 84,48 % dos votos.

PARABÉNS, BENFICA!

Hernâni Matos

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Quando a mudez fala por si

 

Fig. 1 - Bacia em barro vermelho vidrado de Redondo.


Prólogo
Proponho-me analisar um objecto cerâmico (Fig. 1) que não pode integrar a chamada “cerâmica falante”, visto não conter dizeres inscritos. Todavia, tem muito para nos contar, como veremos de seguida.

Identificação e dimensões
Trata-se de uma bacia em barro vermelho vidrado de Redondo, decoração pintada em tons de verde, amarelo e ocre. As dimensões são as seguintes: diâmetro da base: 34 cm; diâmetro exterior da abertura: 46 cm; diâmetro interior da abertura: 44 cm; largura do bordo: 1 cm; Altura: 11 cm.

Decoração
Bordo liso, pincelado irregularmente a verde. Pinceladas amarelas, ocres e verdes, reunidas em grupos afastados entre si. Estas pinceladas dirigem-se todas do bordo para o fundo, ao longo do covo, desviadas para a direita.
O fundo da bacia está decorado com uma bandeira quadrada e bipartida verticalmente em duas cores, verde escuro e ocre, ficando o ocre do lado da tralha. Ao centro e sobreposta à união das cores, figura uma esfera armilar em amarelo e assente sobre elas um escudo de armas com uma alegoria à República. Esta é materializada sob a forma de figura feminina, usando na cabeça um barrete frígio vermelho, o qual desde o séc. XVIII é conhecido como um símbolo de liberdade.

Bandeira nacional
Com a queda da Monarquia a 5 de Outubro de 1910, ocorre uma mudança de paradigma. As instituições e símbolos monárquicos (Rei, Cortes, Bandeira Monárquica e Hino da Carta) são proscritos e substituídos pelas instituições e símbolos republicanos (Presidente da República, Congresso da República, Bandeira Republicana e A Portuguesa), o mesmo se passando com a moeda e as fórmulas de franquia postais.
Visando a criação de uma nova bandeira para o regime republicano, por decreto de 15 de Outubro de 1910, o Governo Provisório nomeou uma “Comissão da Bandeira” integrada por Columbano Bordalo Pinheiro (pintor), Abel Botelho (escritor), João Chagas (jornalista e político), Ladislau Pereira (tenente) e Afonso Palla (capitão).
Poucos dias depois, em 29 de Outubro, a Comissão apresentou ao Governo Provisório uma primeira proposta de bandeira (Fig. 3), assente num cromatismo verde-rubro, o qual remonta ao movimento do 31 de Janeiro de 1891. Também em 5 de Outubro, foi utilizado por Machado Santos na Rotunda e, depois, em todos os quartéis e no alto do Castelo de São Jorge. A proposta, foi de resto, inspirada na bandeira da Carbonária (Fig. 2), sociedade secreta e revolucionária, que teve papel determinante na Revolução de 5 de Outubro de 1910.
Para além daquela proposta e como resultado do entusiasmo popular que então se vivia, surgiram ainda inúmeras outras propostas, suscitando todas elas um debate público muito vivo, centrado no cromatismo e no simbolismo da bandeira.
A 29 de Novembro, após algumas alterações à primeira proposta da Comissão, o Governo Provisório aprovou o projecto final da bandeira (Fig. 4): a bandeira verde e rubra, que após ser produzida pela Cordoaria Nacional, foi distribuída por todo o país.
A decisão do Governo Provisório viria a ser ratificada por decreto aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte, na sua sessão inaugural, a 19 de Junho de 1911.

Datação da bacia
A bandeira que decora o fundo da bacia não corresponde ao modelo aprovado pelo Governo Provisório, pelo que se trata de um dos inúmeros projectos que vieram a público, antes do modelo ser aprovado. Tal facto, leva-nos a admitir que a bacia tenha sido produzida no período 1910-1911. Vejam lá a estória que a bacia tinha para nos contar.

BIBLIOGRAFIA

- ARQUIVO NACIONAL ALFREDO PIMENTA. República na Cidade. [Em linha]. Disponível em: https://www.amap.pt/p/hist-republica-na-cidade-2 [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- COMISSÃO NACIONAL PARA AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DA REPÚBLICA. Projectos de bandeira nacional. [Em linha]. Disponível em: https://5outubro.centenariorepublica.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=98 [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- MUSEU DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Bandeira Nacional. [Em linha]. Disponível em: https://www.museu.presidencia.pt/pt/conhecer/simbolos-nacionais/bandeira-nacional/ [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- PARTIDO POPULAR MONÁRQUICO DE BRAGA. Bandeira nacional de Portugal. [Em linha]. Disponível em: https://ppmbraga.blogspot.com/2014/02/bandeira-nacional-de-portugal.html [Consultado em 01 de Outubro de 2021]. 

Publicado inicialmente a 4 de Outubro de 2021

Fig. 2 - Bandeira da Carbonária.

Fig. 3  - Bandeira portuguesa - 1.ª proposta da Comissão de Bandeira.

Fig. 4 - Bandeira portuguesa - 2.ª proposta da Comissão de Bandeira.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Luísa Batalha e a escultura em alto relevo


Senhora de pezinhos (2021). Escultura em alto relevo. Luísa Batalha (1959-  ).


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Pródomo
Em Junho deste ano reconheci a existência de uma nova tipologia ignorada na minha proposta de Sistemática dos Bonecos de Estremoz, formulada no meu livro BONECOS DE ESTREMOZ, dado à estampa pelas Edições Afrontamento, no Outono de 2018. Tratava-se das “Esculturas em alto relevo”. Descrevi então dois tipos dessas esculturas. Um característico de José Moreira e o outro de Sabina Santos e das Irmãs Flores.
Na mesma ocasião lancei um repto à retoma da produção desse tipo de figuras, o qual encontrou eco junto dos novos barristas. Destes, a primeira a responder ao desafio, foi Luísa Batalha.

Placa relevada com “Senhora de pezinhos”
A criação de Luísa Batalha apresenta as características que passo a descrever. A placa relevada tem geometria quadrangular com 14 cm de lado e cerca de 19 cm de diagonal. O fundo é verde bandeira e a orla zarcão. A disposição do motivo é a da diagonal do quadrado. A suspensão da placa na parede é assegurada através de uma argola de arame cravada no topo superior do lado posterior da placa. No verso ostenta a marca manuscrita “Luisa Batalha / Estremoz / 2021”, distribuída por 3 linhas sensivelmente paralelas.
O vestido, de cor ocre amarelo, tem componentes volumétricos que foram modelados em barro: a gola, os punhos, a orla inferior do vestido e os botões. Estes elementos, assim como as costuras que à frente descem dos ombros, são cor de zarcão. Na zona dos cotovelos são visíveis as dobras das mangas.
O chapéu encontra-se ornamentado por uma garbosa fita cor de zarcão onde está inserida uma pluma de igual cor e deixa ver cabelo castanho ondulado que cobre as orelhas, das quais sobressaem pendentes que configuram ser de ouro.
Os sapatos são em castanho escuro.
O rosto tem bem definidos o nariz, a boca e as maçãs do rosto, os quais conjuntamente com o olhar, se revelam marcas identitárias da barrista.

Desenlace
O cromatismo da figura assenta numa harmoniosa bicromia de duas cores quentes, o zarcão e o ocre amarelo, sendo este a cor dominante. O ocre amarelo associa à figura, um misto de sentimento de alegria e de estado de felicidade. Já o zarcão alia à imagem uma sensação de energia.
O fundo verde bandeira da placa e a figura no seu todo, constituem uma bicromia de frio e quente, o que enfatiza a figura.
A modelação perfeita associada a um cromatismo de bom gosto, traduzem-se num regalo para os olhos: uma placa relevada com uma Senhora de pezinhos bela, elegante, alegre, aparentando felicidade e vigor.
A criação de Luísa Batalha é reveladora de toda a sua sensibilidade, bom gosto, espírito de minúcia e ânsia de perfeição. A barrista é, pois, merecedora dos meus maiores encómios, o que aqui registo e sublinho para memória futura.

Publicado inicialmente a 23 de Setembro de 2021

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Jorge Sampaio na barrística de Estremoz

 

Jorge Sampaio (1996). João Fortio (1951-...)

Jorge Sampaio (1939-2021,) o Presidente da República cuja morte recente foi assinalada por três dias de luto nacional e cerimónias fúnebres de Estado, está representado na barrística de Estremoz.

Primeira presença
Trata-se de um prato covo de média dimensão, em cerâmica vidrada, da autoria do barrista João Fortio (1951-….). Está ilustrado no centro com uma caricatura de Jorge Sampaio da autoria de Aníbal Queiroga (Évora). No fundo ostenta as inscrições: “JORGE SAMPAIO / 9-3-1996 / Presidente da República” e no bordo quatro ramagens. A decoração do prato é uma quadricromia, obtida com tons de azul, verde, preto e laranja.
Estamos em presença de um prato falante que visava comemorar a eleição de Jorge Sampaio para o seu primeiro mandato com Presidente da República (1996-2001). Daí a data inscrita no prato ser a data da sua tomada de posse para o cargo.
A manufactura do prato foi de iniciativa minha como membro da Comissão de Honra de Estremoz, de apoio à Candidatura de Jorge Sampaio a Presidente da República. A tiragem do prato foi de 8 exemplares, um dos quais foi oferecido a Jorge Sampaio para o Museu da Presidência da República.

Segunda presença
Trata-se de um Boneco de Estremoz da autoria da barrista Isabel Catarrilhas Pires (1955-….). Representa Jorge Sampaio na sua condição de Presidente da República, sentado à secretária no seu gabinete. Tem à sua esquerda a Constituição da República Portuguesa que jurou “defender, cumprir e fazer cumprir”. Tem à sua direita a Bandeira Nacional, “símbolo da soberania da República, da independência, da unidade e integridade de Portugal”.
A decoração do Boneco foi efectuada com castanho, preto, vermelho, verde e amarelo, com predominância de cores neutras (castanho e preto), o que confere uma certa solenidade e mesmo austeridade à representação.
Trata-se de uma figura que visava assinalar a eleição de Jorge Sampaio para o seu segundo mandato como Presidente da República (2001-2006).
A manufactura do Boneco foi de iniciativa do Professor Brito Vintém, que segundo a barrista Isabel Pires, em Outubro de 2001 o ofereceu a Jorge Sampaio para o Museu da Presidência da República.



Jorge Sampaio (2001). Isabel Catarrilhas Pires (1955-...)

Publicado inicialmente a 14 de Setembro de 2021

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

1961 - O Princípio do Fim

 

REDONDO - Prato Falante com a inscrição "Recordação de 1961".
Prato covo de grandes dimensões. Esgrafitado e pintado.


Prólogo

Ao inventariar mais um prato da minha colecção de cerâmica de Redondo, constatei que à semelhança de outros, integrava o sub-grupo da Cerâmica Falante, visto incluir uma inscrição: “Recordação de 1961”.
Tal inscrição deu-me que pensar. Porquê 1961? Porquê este ano e não outro? Que aconteceu de especial em Portugal no ano de 1961? Para procurar resposta a esta questão, consultei as efemérides de 1961 em múltiplas fontes. Do fruto desse trabalho dou conta seguidamente.

Efemérides de 1961
As efemérides do ano de 1961 que têm a ver com Portugal são as seguintes:
21 DE JANEIRO - O paquete Santa Maria foi tomado de assalto por um comando liderado pelo então capitão Henrique Galvão. A operação visava desencadear um golpe de Estado capaz de derrubar o regime de Salazar.
4 DE FEVEREIRO – Tem início a guerra colonial quando um grupo de cerca de 200 angolanos, afectos ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), atacou a Casa de Reclusão Militar, em Luanda, a Cadeia da 7.ª Esquadra da Polícia, a sede dos CTT e a Emissora Nacional de Angola.
20 DE FEVEREIRO – A Libéria com o apoio de três dezenas de Estados africanos e asiáticos, requere uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU, para adoptar medidas imediatas, visando impedir que os direitos humanos continuem a ser violados em Angola.
15 DE MARÇO – É aprovada uma moção do Conselho de Segurança da ONU a condenar a situação em Angola, a qual é votada favoravelmente pelos Estados Unidos e pela União Soviética.
25 DE MARÇO – A UPA (União das Populações de Angola) inicia a sua luta armada no norte de Angola, nomeadamente no concelho do Uíge, estendendo-se posteriormente para o sul, até à actual província de Bengo.
4 DE ABRIL - A Assembleia-Geral da ONU aprova uma moção a favor da autodeterminação de Angola.
13 DE ABRIL – O Ministro da Defesa, general Botelho Moniz, lidera as chefias das Forças Armadas numa tentativa fracassada de golpe de Estado, destinado a exonerar Salazar e a promover a reforma do Estado Novo.
20 DE ABRIL - A Assembleia Geral da ONU aprova, por 73 votos contra 2 (Portugal e África do Sul) e 9 abstenções (entre as quais, do Brasil, França e Reino Unido), a resolução 1603 (xv), incitando o governo português a promover urgentemente reformas que dessem cumprimento à Declaração Anticolonialista, tendo em devida conta os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
9 DE JUNHO – Através da resolução 163, o Conselho de Segurança da ONU apela para Portugal desistir de medidas repressivas em Angola e manifesta a esperança de que será encontrada uma solução pacífica para o conflito.
10 DE NOVEMBRO - Tem lugar a operação Vagô, no decurso da qual Palma Inácio, acompanhado de outros revolucionários, desvia um avião da TAP da carreira Casa Blanca – Lisboa e com ele sobrevoa a baixa altitude, Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, lançando cerca de 100 mil panfletos com apelos à revolta popular contra a ditadura. A operação salda-se por um êxito, já que o avião regressa incólume a Casa Blanca, sem que os caças da FAP consigam interceptar o avião.
18 DE DEZEMBRO – Chega ao fim o domínio português de mais de 450 anos na Índia, quando as tropas indianas entram em Goa, Damão e Diu, quase sem resistência.
31 DE DEZEMBRO – Na noite da passagem de ano de 1961 para 1962, tem lugar a gorada Revolta de Beja, tentativa de golpe civil e militar, que sob o comando do então capitão Varela Gomes, procurava derrubar o regime de Salazar a partir do assalto e ocupação do quartel do Regimento de Infantaria N.º 3, em Beja.

Epílogo
Em Portugal, o ano de 1961 ficou assinalado por diversos acontecimentos, através dos quais o regime de Salazar se vê confrontado com ameaças em múltiplas frentes, ainda que o governo tenha conseguido dar resposta à maioria dos problemas.
A sucessão de acontecimentos criou nas hostes oposicionistas a convicção de que o regime de Salazar tinha os dias contados. Tratou se de uma ilusão, já que o regime só seria derrubado 13 anos depois, com o golpe militar de 25 de Abril de 1974. Todavia, o ano de 1961, considerado por muitos o “horribilis annus” para a ditadura de Salazar, marca o princípio do fim do Estado Novo. Daí não ser despropositado admitir que a inscrição “Recordação de 1961” inserida no prato, visasse perpetuar como memória futura, o que de extraordinário aconteceu nesse ano em Portugal.
Publicado inicialmente a 13 de Setembro de 2021

sábado, 11 de setembro de 2021

Ave Maria

 

REDONDO - Prato Falante com a inscrição "Maria" e a mensagem "Ave Maria", 
que para os cristãos tem um profundo significado religioso. Prato covo de média
dimensão.  Esgrafitado e pintado.

Preâmbulo
Ao inventariar um dos pratos da minha colecção de cerâmica de Redondo, constatei que ele integrava o sub-grupo da Cerâmica Falante, visto incluir uma inscrição: o antropónimo “Maria”.
Esta inscrição suscitou-me primeiro alguma reflexão e levou-me posteriormente a trazer à luz do dia, alguma literatura de tradição oral, centrada no antropónimo “Maria”.

O porquê duma inscrição
A visualização do prato pode suscitar várias interpretações. Assim, tendo em conta apenas a inscrição "Maria", posso ser conduzido a uma das seguintes interpretações:
- Pode ter sido manufacturado e dedicado a uma certa “Maria”;
- Pode ter sido encomendado por uma mulher chamada “Maria”;
- Pode ter recebido a inscrição “Maria” por ser o nome feminino mais frequente, o que tornaria o prato mais fácil de vender.
Todavia, a minha interpretação pode ter em conta a conjugação da palavra que representa a imagem (Ave) com a inscrição "Maria". Chego então à frase "Ave Maria", que tem para os cristãos um profundo significado religioso.
Inclino-me, naturalmente, para esta última interpretação, visto ser a mais plausível. O prato para além de integrar a chamada Cerâmica Falante, é um prato que ostenta uma mensagem de saudação à Virgem Maria, transmitida através da oração "Ave Maria", 

Origem do nome Maria
Maria é um nome de origem controversa, muito difundido por todo o mundo, mesmo antes da época de Jesus Cristo. Há quem creia que seja derivado do hebraico Miriam (Senhora Soberana). Outros crêem tratar-se de um nome originalmente egípcio, derivado de Mry (Amada) ou Mr (Amor). Há ainda quem acredite que o nome tenha origem no sânscrito Maryáh (Virgem).

O nome Maria na Bíblia
Maria é um dos nomes mais comuns de todo o mundo há séculos, especialmente por causa da Virgem Maria, a mulher judia que morava em Nazaré e foi escolhida por Deus para ser a mãe de Jesus Cristo. De acordo com o Evangelho segundo São Lucas:
No sexto mês Deus enviou o anjo Gabriel a Nazaré, cidade da Galileia, a uma virgem prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de David. O nome da virgem era Maria.
O anjo, aproximando-se dela, disse: "Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!"
Maria ficou perturbada com essas palavras, pensando no que poderia significar esta saudação. Mas o anjo lhe disse: "Não tenha medo, Maria; você foi agraciada por Deus! Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim". LUCAS 1:26-33.

Antroponímia
“Maria” é o nome próprio feminino mais comum há séculos em Portugal e em quase todo o número. O antropónimo simples “Maria” pode integrar elevado número de antropónimos compostos femininos, tais como: Maria Antónia, Maria Augusta, Maria Clara, Maria Madalena, Maria da Assunção, Maria da Conceição, Maria da Cruz, Maria da Fé, Maria da Graça, Maria da Luz, Maria da Paz, Maria da Piedade, Maria da Purificação, Maria das Dores, Maria de Fátima, Maria de Jesus, Maria de Lourdes, Maria do Amparo, Maria do Céu, Maria do Socorro, Maria dos Anjos, Maria dos Prazeres, Maria dos Remédios, Maria Francisca, Maria João, Maria Joaquina, Maria Luísa, Maria Madalena, Maria Manuela, Maria Rosa, Maria Santos, Ana Maria, Eduarda Maria, Fernanda Maria, Filomena Maria, Joana Maria, Rosa Maria, etc. Constata-se que grande número destes antropónimos compostos femininos, utiliza Maria como primeiro nome, sendo o segundo um nome com referências gratas aos católicos
O antropónimo simples “Maria” pode integrar igualmente antropónimos compostos masculinos, dos quais destaco: António Maria, João Maria, José Maria, Manuel Maria, etc.

Toponímia
O antropónimo “Maria” integra a designação de vários topónimos relativos a lugares de freguesias de determinados concelhos portugueses. Usando a notação “LUGAR – Freguesia (Concelho)” temos: MARIA DIAS [Penamacor (Penamacor)], MARIA DO CIZO [Coruche (Coruche)], MARIA DO VALE [Nossa Senhora das Neves (Beja)], MARIA GOMES [Machin (Pampilhosa da Serra)], MARIA MARTINS [Monsanto (Idanha-a-Nova)], MARIA MENDES [Serpins (Lousã)], MARIA PIRES [Alvor (Portimão)], MARIA RUIVA [Arcos (Estremoz)], MARIAS [Marmelete (Monchique)], MARIA VINAGRE [Aljezur (Aljezur)].

Gíria Popular
A gíria popular assume importância, enquanto valor acrescentado à linguagem dita erudita. Daí que tenha procurado referenciar a presença do antropónimo “Maria” na gíria popular e dar conta do respectivo significado:
- DO TEMPO DA MARIA CACHUCHA (Muito antigo), - MARIA (A mulher em geral; a esposa), - MARIA DA FONTE (Desordem), - MARIA DAS PERNAS COMPRIDAS (A chuva), - MARIA DE BARBA (Mulher perigosa – Alentejo), - MARIA RAPAZ (Rapariga que pelo aspecto físico e/ou comportamento se parece com um rapaz), - MARIA VAI COM AS OUTRAS (Pessoa que não pensa por si, limitando-se a fazer os que os outros fazem), - MARIA-CACHUCHA (Rapariga folgazona), - MARIA-FUMAÇA(Locomotiva), - MARIA-FRANCISCA (Prostituta-Baixo Alentejo), - MARIA-GOMES (Designação dada à planta Beldroega-grande), - MARIA-GORDA (Designação dada à planta Beldroega-grande), - MARIA-MALUCA (Rapariga destrambelhada), - MARIA-MIJONA (Adolescente que ainda faz chichi na cama), . MARIA-VITÓRIA (Palmatória), - MAU MARIA! (Interjeição de descontentamento e ameaça), - MULHER DA GRADE (Bruxa-Sangalhos), - TEM-TE MARIA, NÃO CAIAS! (Tem-te, não caias).

Adivinhas
Conheço as seguintes adivinhas cuja solução envolve o antropónimo Maria:
- O pai de Maria tem 5 filhas. Naná, Nené, Niní, Nonó e…? (SOLUÇÃO: Maria);
- Se a filha da Maria é a mãe da minha filha, o que sou eu da Maria? (SOLUÇÃO: Filha da Maria).

Alcunhas alentejanas
Como era expectável, o nome Maria integra o vasto universo das alcunhas alentejanas. Passemos em revista alguma dessa presença: - MARIA DA FEIXOCA - Nome atribuído a uma mulher que apanha feixes de lenha (Campo Maior); - MARIA DA RAPINA - A visada morou num monte com esse nome (Santigo do Cacém); - MARIA DA SEMPRE NOIVA - A nomeada viveu numa herdade com este nome (Arraiolos); - MARIA DA SEXTA – Alcunha atribuída a mulher que é vendedora ambulante e costuma fazer os mercados semanais à sexta-feira (Marvão); - MARIA DAS PERNAS À BANDA - Denominação outorgada a uma mulher que tem as pernas tortas e curvadas para dentro (Alcácer do Sal); - MARIA DO ALCAROU - A receptora habitou num monte com este nome (Évora); - MARIA DO AVIÁRIO - A alcunhada tem este nome porque teve um aviário (Almodôvar); - MARIA DO CRÉ - A visada morou num monte com esse nome (Évora e Moura); - MARIA DO LEITE - A nomeada foi leiteira (Santiago do Cacém); - MARIA DO MOIRÃO - A receptora recebeu esta alcunha porque está sempre a espreitar ao pé de um muro (Moura); - MARIA DO VALE MEQUE – Alcunha outorgada a mulher que viveu num monte com este nome (Cuba); - MARIA DOS ARNEIROS ALTOS – A visada é uma mulher que habitou num monte com este nome (Santiago do Cacém); - MARIA QUERES MAIS CHÁ? - Velhota que gostava muito de chá (Reguengos de Monsaraz).

Cancioneiro Popular
É sabido que o Alentejo é uma das regiões do país, com menor religiosidade popular. Tal facto não impediu que o cancioneiro popular alentejano registasse quadras de exaltação à Virgem Maria:

Não há homem como Deus,
Nem mulher como Maria,
Nem’strela como a do Norte
E nem luz como a do dia.

Chamaste-me amor perfeito,
Coisa que a terra não cria.
O amor perfeito é Deus,
Filho da Virgem Maria.

As nuvens no céu se tingem
N’um arco de sete cores.
São sete as dores de Maria,
São setenta as minhas dores.

Esta noite à meia noite,
À meia noite seria,
Ouvi cantar os anjos
E mais a Virgem Maria.

Sendo Maria o nome mais comum entre mulheres, não é de admirar que o cancioneiro popular alentejano e, em particular, o cancioneiro amoroso, inclua quadras com aquele nome inscrito:

Eu, do nome que mais gosto
É do nome de Maria.
Quem te pôs tão lindo nome,
Meu segredo já sabia.

Maria estás encoimada,
Vou dizê-lo a teu pai,
Deitaste a água na rua
E sem dizer – água vai.

O coração de Maria
Dizem que o tenho eu.
O coração sem o corpo,
Para que o quero eu?

Por Maria é que eu me morro,
E por Ana é que eu padeço.
Se não lograr uma delas,
Estou certo que endoideço.

Epílogo
Apesar do título do presente texto ser simplesmente “Ave Maria”, a abordagem do tema “deu pano para mangas”, o que é revelador da riqueza da nossa literatura de tradição oral, a qual carece de maior divulgação numa época em que se procura enfatizar o património cultural imaterial.

BIBLIOGRAFIA

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BELO, Ana. Mil e tal nomes próprios. Arte Plural, Edições. Cascais, 2007.
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SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.

Publicado inicialmente a 10 de Setembro de 2021