sábado, 2 de janeiro de 2021

Hernâni Matos, meu amigo


Francisco Martinho Garrido Ramos (Xico de São Bento).  Poeta popular e Presidente
da Academia do Bacalhau de Estremoz.
 

Décimas dedicadas a Hernâni Matos
pelo poeta popular Xico de São Bento


HERNÂNI MATOS, MEU AMIGO

MOTE                                                                    
Hernâni Matos, meu amigo
Homem da escrita e da cultura,
É um gosto  aprender contigo,
Para mim és uma figura.

És homem de forte convicção,
Como jornalista e escritor,
És dedicado investigador,
És blogger por paixão
E tens Estremoz no coração,
Razões porque te digo,
Que tens a cultura como abrigo
Da barristica gostas de falar,
E tudo sobre os bonecos estudar
Hernâni Matos, meu amigo.

Pessoa nas artes esclarecida,
Ganhas o pão como professor
E és exímio comunicador.
Grande apaixonado pela vida,
Que fazes por ser bem vivida.
Socialmente boa criatura
E fisicamente com estatura
Grande fã da nossa cidade
E bem visto na sociedade
Homem da escrita e da cultura.

Estudioso da arte pastoril,
De que estás bem informado,
Da enxada à charrua e ao arado,
Do alforge, aos safões e ao barril,
Utensílios conheces mais de mil.
Da pastorícia és grande amigo,
Conheces a aveia, a cevada e o trigo,
Desde o churrião ao burnil, até canga
Para Ti não há segredos na manga
É um gosto aprender contigo.

Por vezes temos discordado,
Em nomes ou definições,
Cada um tem as suas opiniões,
Mas eu não fico conformado.
Quando penso que estás errado,
Nas coisas da agricultura,
Mantenho a minha postura.
Ainda que sejas professor,
Eu não sou desconhecedor,
Para mim és uma figura.

São Bento do Ameixial, 31/12/2020
Xico de São Bento

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Auto dos ganchos de meia

 
Ganchos de meia (Da esquerda para a direita e de cima para baixo): Padre, Sacristão,
Senhora de Pezinhos, Peralta, Sargento, Palhaço, Frade, Freira, Nossa Senhora, Galo.
Ana Catarina Grilo (1974-  ).

À barrista Ana Catarina Grilo


O enredo desenrola-se na actualidade, na rua de Santo André da chamada Cidade Branca. O perfil dos personagens pode ser descrito assim:
- PESSOA QUE EU CÁ SEI: Coleccionador apaixonado de tudo o que tem a ver com a identidade cultural alentejana. Escritor, Jornalista e Blogger, o seu mais recente livro é um livro de amor aos Bonecos de Estremoz.
- MULHER: casada com a pessoa que eu cá sei, a quem interpela com frequência acerca dos Bonecos que leva para casa.
No desenrolar da acção serão simplesmente designados por CÁ SEI e MULHER.
CÁ SEI acabara de comprar uma série de ganchos de meia à barrista Ana Catarina Grilo. Já perto de casa é surpreendido pela MULHER, que acabara de sair à rua. Vendo-o com um saco na mão, decide questioná-lo, o que dá origem ao seguinte diálogo:  
MULHER - Oh homem! O que levas no saco?
CÁ SEI - São ganchos, mulher. São ganchos. São ganchos de meia.
MULHER - Mostra lá.
CÁ SEI - Podes ver à vontade.
MULHER - O que é isto? Um Padre com um arame na braguilha?
CÁ SEI - Sim. E um Padre que organizou um retiro espiritual no Convento de Nossa Senhora das Graças.
MULHER - Retiro espiritual?
CÁ SEI - Retiro espiritual, sim. Para purificar a alma a pecadores.
MULHER - E para que é este Sacristão?
CÁ SEI - É para ajudar o Padre sempre que for preciso.
MULHER - E esta Senhora de Pezinhos com o chapéu às três pancadas?
CÁ SEI -  Bom. Essa é uma pecadora. Basta olhar para ela.
MULHER - Pecadora porquê?
CÁ SEI - Queres que te diga mesmo?
MULHER - É melhor não.
CÁ SEI - Tu é que sabes.
MULHER -  E este Peralta com ar de fadista?
CÁ SEI - Esse também é pecador. Não se vê logo? Queres que te diga porquê?
MULHER - É melhor não.
CÁ SEI - Tu lá sabes.
MULHER - E este Sargento?
CÁ SEI - Também é pecador.
MULHER - Pecador por quê?
CÁ SEI - Olha, mulher. Decerto que não foi por deixar enferrujar a espada.
MULHER - E este Palhaço?
CÁ SEI -  Igualmente é pecador.
MULHER - Pecador, porquê?
CÁ SEI -  Por dizer graças que não devia.
MULHER - E o que faz aqui Nossa Senhora? Não me venhas agora dizer que também é pecadora.
CÁ SEI – Credo! Não, mulher. Nossa Senhora é Imaculada.
MULHER - Então o que faz aqui?
CÁ SEI - É que o Padre organizou o retiro por inspiração de Nossa Senhora.
MULHER - E o Frade? Qual é o papel do Frade?
CÁ SEI - O Frade é o supervisor da cozinha. É ele quem escolhe as carnes, os peixes e os vinhos.
MULHER - Então o retiro vai meter comezaina?
CÁ SEI - Eu não me atreveria a dizer isso. Mas lá que têm de comer, isso têm.
MULHER - E a Freira, que faz aqui a Freira?
CÁ SEI - A Freira tem à a sua responsabilidade os doces conventuais.
MULHER - Há assim tantos que precisem de alguém que se encarregue deles?
CÁ SEI - Nunca os contei, mas posso-te indicar alguns, tais como: Barrigas de Freira, Biscoitos do Cardeal, Bolo do Diabo, Cavacas de Santa Clara, Coalhada do Convento, Creme da Madre Joaquina, Delícias de Frei João, Hóstias de amêndoa….
MULHER – Mas há assim tantos doces conventuais?
CÁ SEI - Ainda a procissão vai no adro. Queres saber de mais? Olha, aqui tens: Marmelada Branca de Odivelas, Mexericos de Freiras, Orelhas de Abade, Pitos de Santa Luzia, Queijinhos do Céu, Sopapo do Convento, Suspiros de Braga, Toucinho do Céu…
MULHER - Basta homem, que já estou enjoada com tanto doce!
CÁ SEI - Está bem, mas fica a saber que ainda havia muitos mais.
MULHER - E o Galo. O que faz aqui o Galo?
CÁ SEI -  O Galo é para a canja do almoço.
Nesta altura, a mulher já farta do relambório do marido, grita:
- Tu estás é maluco da cabeça e a família não sabe!
O marido vê-se então obrigado a invocar o auxílio do céu e implora:
- Valham-te Santa Justa e Santa Rufina [1] juntas!
 
CAI O PANO

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 24 de Novembro de 2020 
 
 

[1] Santas Protectoras de todos aqueles que modelam o barro.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Auto de Natal

 

Personagens (da esquerda para a direita) e de cima para baixo:
Dona Victória Augusta, Maurício, Aurora, Frei António, Catarina, Flora, Amora
 e Pandora. Falta aqui o autor do auto, que também é personagem do mesmo.


À Boniqueira Joana Santos,
criadora dos personagens deste auto,
à excepção de um que lhe é pré-existente
e para que conste, sou eu.

Prólogo
O enredo desenrola-se numa casa da baixa citadina de Estremoz. Ocorre na actualidade, em situação de pandemia. Os personagens remontam a tempos que já lá vão. Nasceram das mãos da Boniqueira Joana Santos, que os pôs à guarda do dono casa, que por isso também é personagem. O perfil de todos os intervenientes é descrito como segue.
Personagens
- D. AUGUSTA VITÓRIA (Dama): Senhora com pelo na venta e ligações remotas ao costado dos Braganças. Exige ser tratada de acordo com o estatuto social que considera ser o seu. Veste à moda do Antigo Regime e a roupa que usa vem toda de Paris. Gosta de andar de sombrinha, para o que der e vier. Está alojada no salão no topo de um móvel alto, como convém à sua augusta pessoa.  
- MAURÍCIO (Peralta): Cavalheiro charmoso, elegantemente vestido, de cabelo e bigode cor de cinza, marcas da patina do tempo. Os olhos grandes e profundos, atestam que é um homem com experiência de vida. O chapéu às três pancadas indicia que é um “bom vivant”. É um eterno apaixonado. Ama Aurora, a luz dos seus olhos. Ocupa um lugar de eleição: uma das prateleiras de uma estante colocada num local discreto e reservado da sala de estar.
- AURORA (Senhora de pezinhos): Mulher sensível, bela e elegante. Aperalta-se primorosamente para agradar a Maurício. Está sempre onde Maurício se encontra.
- FREI ANTÓNIO (Santo António): Franciscano, enverga o hábito simples consignado pela Ordem. Milagreiro, dado a leituras e sermões. Vive retirado no oratório do quarto do dono da casa, consciente das suas responsabilidades de Santo Protector.
- CATARINA (Ceifeira): Alentejana com memória de muitas lutas e esperança nos amanhãs que hão de vir. Permanece no último andar da casa, assente num pedestal, junto a uma janela. Com o seu olhar de moura encantada, ávida das claridades do Sul, está sempre atenta e perscruta o horizonte da charneca, à espera que chamem por si.
- FLORA (Primavera): Figura transbordante de alegria e calor humano, que personifica a harmonia associada à renovação da natureza. Está num nicho da sala de entrada, pronta a dar as boas vindas a quem vier por bem.
- AMORA (O Amor é Cego): Figura da qual irradia calor, paixão e disponibilidade para o amor carnal e doce. Encontre-se na sala de entrada, no mesmo nicho onde está Flora.
- PANDORA (Primavera de toucado): Figura da qual resplandece fertilidade, abundância, riqueza e prosperidade. Permanece na sala de entrada, no mesmo nicho onde estão Flora e Amora.
- ANTÓNIO ALTURAS (Pessoa que eu cá sei): Coleccionador e investigador coca-bichinhos de tudo o que tem a ver com a identidade cultural alentejana. Tem à sua guarda, várias criações da Boniqueira Joana Santos, o que não é tarefa fácil, já que todas têm alma e vida, paixão, ideais, convicções e credos, que por vezes as fazem entrar em conflito umas com as outras. Serve-se então das suas capacidade de negociador nato, as quais lhe permitem sanar conflitos. De resto e por precaução (Homem prevenido vale por dois), alojou-os lá em casa, distribuindo-os por várias divisões, tendo em conta as afinidades e as dissemelhanças entre eles.
Acção
Tudo começa quando António Alturas chega a casa. Na sala de entrada é recebido por Flora, Amora e Pandora, que lhe dirigem uma saudação, praticamente em uníssono:
- Seja bem-vindo António Alturas!
Ao que ele replica:
- Como é que estão Suas Graças?
E elas respondem:
- Estamos algo preocupadas. Frei António não pára de arengar. Ouve-se aqui tudo como se estivesse-mos ao pé do oratório. E o que é aborrecido é que ele repete sempre o que está a dizer.
A resposta não se faz tardar:
- Fiquem descansadas que eu já vou ver o que se passa.
E dito isto dirige-se para o quarto contíguo onde se encontra o oratório com Frei António. Aí, dá com o frade, de má catadura e cara de poucos amigos, pelo que lhe pergunta:
- O que é que se passa Frei António?
O frade põe logo tudo em pratos limpos:
- Meu caro António Alturas: Estou farto de reclusão e aproxima-se o Natal. Quero ir à Missa do Galo e depois cear com os meus irmãos argilosos que estão espalhados pelas divisões desta casa.
António pergunta-lhe então:
- E Frei António já sabe se eles querem cear consigo? E ir mesmo à Missa do Galo?
A resposta vem de rompante:
- Então não hão de querer? Era o que faltava não quererem…
António toma então uma decisão rápida:
- Pois fique sabendo, Frei António, que não há Missa do Galo para ninguém e não pode haver ceia conjunta cá em casa. Cada um come onde está e fica o assunto resolvido.
O frade não desarma e pergunta:
- Mas porquê? Dê-me uma razão forte, homem de Deus.
A resposta não demora:
- Ouça Frei António: São ordens do outro António, o Costa, que também é de gancho. É tudo por causa da pandemia. A Missa do Galo fica para o ano que vem, que o Galo não se importa. Quanto à ceia, cada um come onde está. D. Augusta Vitória, Frei António e Catarina têm de cear sozinhos. Aurora ceia com Maurício e, por fim, Flora ceia com Amora e com Pandora. São ordens para se cumprir!
Mas o frade não está pelos ajustes e replica:
- Cá em casa não há liberdade religiosa nem de circulação.
O anfitrião atira-lhe então com esta:
- Ah, ele é isso? Pois fique sabendo Frei António que se me continua a azucrinar, vou falar com o Superior da Ordem. Vou-lhe contar que de vez em quando dá umas escapadelas do oratório, para ir à procura de moças com bilhas partidas.
Foi remédio santo. O frade ficou manso que nem um cordeiro. As suas últimas palavras foram:                                                                         
- Pronto, meu caro António Alturas, não se fala mais no assunto.
Com o problema do frade resolvido, António Alturas foi dar conta das determinações aos outros membros da comunidade argilosa, um a um, ouvindo então as suas respostas. Primeiro foi D. Augusta Vitória que declarou:
- Ir à Missa do Galo com este tempo? Que horror, só de pensar nisso, fico com arrepios de frio. Quanto a ceias separadas, acho mesmo muito bem. Pode contar com a minha inteira colaboração. Não gosto nada de misturas. Mais vale prevenir que remediar.
Seguidamente foram Maurício e Aurora, falando o primeiro em nome de ambos:
- Nós vivemos um para o outro e sentimo-nos bem aqui no nosso cantinho. Missa do Galo e ceia conjunta? Não, obrigado!
Depois foram Flora, Amora e Pandora, falando a última em nome de todas:
- A nossa vida é o Carnaval que está à porta. Não queremos correr riscos. Por isso, dispensamos a Missa do Galo e a ceia conjunta. Pode contar com a nossa colaboração incondicional.                      
Por fim, foi Catarina:
- Eu à Missa do Galo não ia, que não sou dessas coisas. Mas agora, não haver ceia colectiva, acho mal. Não tem jeito nenhum a gente cear sozinhos. A gente juntos tem mais força.
António vê-se então obrigado a recorrer a argumentos mais fortes:
- A Catarina não se importa de poder vir a prejudicar companheiros? Onde é que está a sua consciência de classe?
Ao ver-se confronta com este argumento inescapável, a atitude de Catarina suaviza-se e ela acaba por ceder:
- Tem razão companheiro. Eu já sofri muito e por isso estou disposta a sofrer ainda mais se for preciso, para ajudar a construir um Mundo Novo.
Levanta então a foice no ar e grita a plenos pulmões:
- Avante, camaradas!
CAI O PANO
 
Publicado inicialmente a 23 de Dezembro de 2020

Dama (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Peralta (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Senhora de pézinhos (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Santo António - Gancho de meia (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Ceifeira (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Primavera (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Amor é cego (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Primavera de toucado (2020). Joana Santos (1978-  ). 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Santo António no púlpito


Santo António no púlpito (2020). Carlos Alves (1958-  ). 

Prólogo
A figura de Santo António é uma das imagens devocionais mais antigas e mais populares, produzidas pelos barristas de Estremoz. As representações conhecidas figuram-no, em geral, assente numa peanha trajando em alternativa:
- 1) O hábito castanho da ordem franciscana, com cordão de 3 nós e por vezes com o rosário à cintura;
- 2) As vestes de cónego regrante de Santo Agostinho, o qual inclui túnica branca, sobrepeliz de linho, redonda e ampla, assim como murça preta, apertada apenas por um botão.
Em qualquer das figurações e em geral, o Santo ampara no braço esquerdo um livro, sobre o qual se senta o Menino Jesus, que segura nas mãos o globo do mundo. Na mão direita do Santo, uma açucena ou em alternativa uma cruz.
Trata-se frequentemente de representações inspiradas em imagens devocionais em madeira, que são objecto de culto nas nossas Igrejas.
Todavia nem sempre é assim. A barrista Fátima Estróia há muito que prescindiu da peanha nas representações de Santo António, não sei se por o considerar um Santo “terra a terra” (popular) ou por no momento da criação não estar a pensar em nenhuma imagem de Igreja.[1] Recentemente, a barrista Joana Oliveira criou duas composições: “Passeio de Santo António com o Menino Jesus” e “Sermão de Santo António aos peixes”. Em qualquer das suas criações, prescindiu compreensivelmente do recurso à peanha, uma vez que não estava a representar qualquer imagem existente numa Igreja. Estava sim a concretizar, respectivamente, representações da intimidade de Santo António com o Menino Jesus e de um sermão bem conhecido.
As representações anteriores não esgotam as possibilidades de figurar o Santo em contexto de imagem de culto ou em aspectos da sua vida. Na verdade, a biografia de Santo António é bem conhecida e retrata-o como teólogo, místico, asceta, grande taumaturgo, notável orador e homem de grande cultura, documentada pela colectânea de sermões escritos que nos legou. Significa isto que os barristas de Estremoz têm possibilidade de efectuar outras representações de Santo António, para além daquelas que são conhecidas.
Foi nessa ordem de ideias que tendo sido Santo António um grande orador, o barrista Carlos Alves criou uma imagem de “Santo António no púlpito”[2], inspirada na escultura homónima em madeira (58x17x12 cm), de autor desconhecido, que terá sido criada no período 1501-1525 e que pertence ao acervo do Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra. É dessa imagem que seguidamente vou falar.


Santo António no púlpito
“Santo António no púlpito” (39x13x12,5 cm) é uma figura composta por duas figuras elementares: “Santo António” (26x11,5x8 cm) e “púlpito” (24x13x12,5 cm).
Santo António enverga o hábito castanho da ordem franciscana, com manto e capucho sobre a cabeça. Calça sandálias. À cintura tem cingido o cordão creme de três nós, que simbolizam os votos perpétuos do Santo: obediência, pobreza e castidade, as três pedras angulares da Ordem Franciscana. Ambas as mãos estão encostadas ao peito, sem contudo estarem fechadas, numa atitude de quem procura dar vida às palavras, acompanhando-as com gestos.
A figura do Santo assenta numa base estreita, prismática e sextavada, de cor amarela, heterogénea, configurando mármore raiado de castanho.
O púlpito, assente numa base moldurada, tem forma prismática e sextavada, de cor igualmente amarela, heterogénea, configurando mármore raiado de castanho. Apresenta atrás uma abertura com uma extensão correspondente a duas faces do prisma, a qual permite a entrada da figura do Santo. O púlpito está coberto com um pano de púlpito, de cor verde e com franjas douradas.

O simbolismo das cores 
- Verde, cor das plantas e das árvores, associada ao crescimento, à renovação e à plenitude. Simboliza a esperança na vida eterna. É a cor usada nos Ofícios e Missas do Tempo Comum;
- Amarelo, cor associada ao Sol, que dá a sensação de brilho e iluminação. Cor acolhedora que estimula o optimismo, proporciona concentração e estimula o intelecto;
- Castanho, cor de terra, que no dizer de São Francisco de Assis é mais humilde que os outros elementos e que está associada aos votos de pobreza assumidos pelos franciscanos. É a cor normativa da Ordem;
- Dourado, cor do ouro, o mais nobre dos metais, associado ao que é perfeito, durável e eterno. Cor que evoca o Sol e o fogo, símbolo do amor e da luz celeste.


Cancioneiro Antonino
É vasta a literatura de tradição oral portuguesa referente a Santo António. Do extenso cancioneiro antonino seleccionei algumas quadras, que julguei adequadas ao presente texto. Uma que refere o tecido do hábito: “Ó meu padre Santo António / Vestidinho d’estamenha; / A quem Deus quer ajudar, / O vento lhe ajunta a lenha.” (1)
Outra que refere o cordão com que cinge a cintura: “Ó meu padre Santo António, / O vosso cordão é bento; / Dai-me a luz dos vossos olhos / Do Divino Sacramento.” (1)
Uma relativa ao julgamento do seu pai: “Santo António já foi frade, / Já foi frade, já pregou: / Ao pedir Ave-marias / Seu pai da forca livrou.” (1)
Outra respeitante ao sermão aos peixes: “Santo António Português, / Quando foi pregar ao mar, / Até os peixes na água, / Se puseram a escutar!” (1)
Finalmente uma relativa ao interesse despertado nas moças: “Santo António de Lisboa / Era um grande pregador, / Mas é por ser Santo António / Que as moças lhe têm amor.” (2)


Epílogo
A mais recente criação do barrista Carlos Alves veio enriquecer sobremaneira, a barrística popular estremocense, o que para mim é gratificante.
Pela singularidade da sua criação, modelada com rigor e pelo cromatismo agradável, fortemente simbólico e esteticamente harmonioso, o barrista é merecedor de toda a minha admiração. Por isso, publicamente o felicito:
- PARABÉNS, CARLOS ALVES!

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATTOS, Armando de Matos. Santo António de Lisboa na Tradição Popular (Subsídio Etnográfico). Livraria Civilização. Porto, 1937.
(2) - PESSOA, Fernando. Quadras ao Gosto Popular. Ática. Lisboa, 1965.
 

[1] O mesmo já acontecera com barristas como José Moreira, irmãs Flores e Maria Luísa da Conceição na criação de imagens devocionais de outros Santos.
[2] O púlpito é parte integrante de um templo católico e consiste numa plataforma elevada em relação ao solo, cercada por um guarda-corpo e provido de um determinado meio de acesso. A sua função é elevar espacialmente o orador, para melhor ser visto e ouvido pelos fiéis. Pode apresentar elementos decorativos que reforçam a dignidade do discurso e do pregador.


Santo António no púlpito (1501-1525). Escultura em madeira (58x17x12 cm),
de autor desconhecido. Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra.

 “Santo António” e “púlpito”, figuras elementares que integram a figura composta
“Santo António no púlpito” (após cozedura).

 “Santo António no púlpito” - parte da frente  (após cozedura).

 “Santo António no púlpito” - parte detrás  (após cozedura).

 “Santo António” e “púlpito”, figuras elementares que integram a figura composta
“Santo António no púlpito” (após pintura e envernizamento).

“Santo António no púlpito” - parte da frente  (após pintura e envernizamento).

 “Santo António no púlpito” - parte detrás  (após pintura e envernizamento).

domingo, 29 de novembro de 2020

Auto das damas dos girassóis

 
Senhora de pezinhos (gancho de meia) e dama. Vera Magalhãess (1966-   ).

Festa fracassada
Recentemente promovi uma festa íntima entre Bonecos de Estremoz produzidos pelos novos barristas e que de momento integram a minha colecção. Presentes Bonecos de Ana Catarina Grilo, Inês da Conceição, Joana Santos, Jorge Carrapiço, Luís Parente, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Sara Sapateiro, Vera Magalhães e Zé Carlos Rodrigues.
A festa decorreu no tampo da mesa maior da minha casa, a da casa de jantar. Como anfitrião aí os conduzi, a partir do local onde se encontravam.
A festa visava a integração dos participantes no meio onde estão inseridos, bem como o fomento da socialização entre eles, a fim de que entre si existisse bom entendimento e amizade, à semelhança do que se passa entre os seus criadores.
A festa estava a ser um êxito até chegar a mais recente das aquisições, a Minorca[1]. A partir daqui as coisas complicaram-se, visto que entre os presentes no tampo da mesa se encontrava já a Maiorca
[2], que tal como a Minorca trajava um elegante vestido, confeccionado em tecido estampado com padrão de girassóis em campo verde seco e na cabeça um airoso chapéu castanho, emplumado. Ao verem-se uma à outra, logo se detestaram, travando entre si um diálogo acalorado:
MAIORCA - Fedelha! Olha o que lhe havia de dar. A vestir-se como se fosse adulta. 
MINORCA - E tu esganiçada! Julgas que trazes o rei na barriga?
MAIORCA - Cresce e aparece!
MINORCA - A mulher e a sardinha, quer-se pequenina.
MAIORCA - Tu és de gancho!
MINORCA - Olha, esta regaram-lhe os pés à nascença!
MAIORCA - Já a formiga tem catarro?
MINORCA - As mulheres não se medem aos palmos.
Minorca e Maiorca têm pêlo na venta, cada uma à sua maneira. Ao encontrarem-se e ao conhecerem-se, logo passaram a dar-se como o azeite e o vinagre. O seu conhecimento mútuo não fez faísca.
Como não se entendiam e porque estavam à minha guarda tive de arranjar maneira de resolver o problema de uma vez por todas. Alojei cada uma em sua sala e proibi-as de se encontrarem. Sabem porquê? Tenho mais que fazer que aturar damas desavindas.

Dedicatória
Este auto é dedicado à barrista Vera Magalhães, de cujas mãos hábeis nasceram as duas personagens deste auto.
A minha gratidão por tais actos criadores é acompanhada de um sincero pedido de desculpas, visto o auto ter sido tão curto. A razão é óbvia: as personagens não se entenderam e puseram em causa a continuidade da festa, ao armarem o reboliço que armaram. Só me restou uma solução: pôr fim ao auto. Foi o que fiz.
 

[1] Dama - Gancho de meia (altura: 4 cm) criado pela barrista Vera Magalhães
[2] Dama (altura: 18 cm) da autoria da mesma barrista.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

O todo e as partes

 
Fig. 1 - Pastor à fogueira com rebanho. Sabina da Conceição (1921-2005). 

Preâmbulo
O presente texto tem por finalidade efectuar a análise comparativa de figuras singulares e de figuras compostas da barrística popular de Estremoz, que integram um elemento comum, mas que diferem na sua composição.

Do singular para o composto
O PASTOR DE TARRO E MANTA (Fig. 2) é uma figura que constitui um registo etnográfico do Além Tejo de antanho, que habitualmente é caracterizada através de atributos, uns que têm a ver com o vestuário (pelico, safões, chapéu aguadeiro e botas) e outros que têm a ver com utensílios do dia a dia (cajado, manta e tarro). Trata-se de uma figura singular da faina agro-pastoril, descontextualizada do meio físico em que trabalha (o campo), do objecto do seu trabalho (gado ovino) e de auxiliares do trabalho (cão).
Após a revitalização da produção de Bonecos de Estremoz efectuada por José Maria de Sá Lemos (1892-1971) nos anos 30 do séc. XX, tanto Ana das Peles (1869-1945) como Mariano da Conceição (1903-1959), modelaram a figura singular (PASTOR DE TARRO E MANTA).

Fig. 2 - Pastor de tarro e manta. Sabina da Conceição (1921-2005).

Após a morte de Mariano, sua irmã Sabina da Conceição (1921-2005) dá continuidade à manufactura dos Bonecos de Estremoz, mas para além das figuras confeccionadas por seu irmão produz outras[1], entre as quais o PASTOR À FOGUEIRA COM REBANHO (Fig. 1), na qual a figura da faina agro-pastoril está devidamente contextualizada.

Do composto para o singular
A SENHORA A SERVIR O CHÁ (Fig. 3) é uma figura que pertence ao conjunto dos chamados Bonecos da Tradição. Trata-se da representação simplificada duma cena tradicional da vida íntima e social da mulher burguesa ou aristocrata. A senhora traja à moda do séc. XIX, tem a mão esquerda apoiada na anca e a mão direita pegando num bule assente numa mesa de pé de galo (3 pés), de tampo circular. Sobre este, encontram-se ainda 3 chávenas, 3 bolos e 1 açucareiro. Tudo isto constitui atributos da figura.

Fig. 3 - Senhora a servir o chá. José Moreira (1926-1991).

A SENHORA A SERVIR O CHÁ é uma figura absolutamente contextualizada, que correspondia a um tipo de convívio, tradição corrente nos lares portugueses de classe média ou alta, no qual por uma questão de cortesia e arte de bem receber, competia à dona da casa, a missão de servir o chá às suas visitas. Apesar de ter modelado esta figura, José Moreira (1926-1991), resolveu descontextualizá-la[2] e num acto que presumo de conferir maior importância à figura humana, criou a SENHORA COM BULE (Fig. 4).

 Fig. 4 - Senhora com bule. José Moreira (1926-1991).

Conclusão
Em qualquer dos casos anteriores ocorreu inovação em relação àquilo que se convencionou chamar Bonecos da Tradição. No primeiro caso criou-se um todo, complementando uma das partes já existente. No segundo caso, extraiu-se uma parte de um todo que lhe era anterior.
Em qualquer dos casos, alargaram-se os horizontes à barrística, como é próprio da inovação. O que se regista e saúda.
 

[1] Das figuras que não foram modeladas tanto por Ana das Peles como por Mariano da Conceição, mas foram modeladas por Sabina da Conceição, destaco entre outras: PASTOR À FOGUEIRA COM REBANHO, PASTOR COM REBANHO JUNTO À CHOÇA, PORQUEIRO E VARA DE PORCOS, SEMEADOR.
[2] O caso apresentado não é único. José Moreira criou a FIANDEIRA, descontextualizando a MULHER DOS PERUS, a MULHER DAS GALINHAS e a MULHER DOS CARNEIROS.

sábado, 21 de novembro de 2020

Um gancho de meia antonino



Santo António (Gancho de meia). Joana Santos (1978-  ). 


À Boniqueira Joana Santos,
de Foros do Queimado,
Évora 
Este Doutor da Santa Igreja
que nasceu em Foros do Queimado,
não há mesmo ninguém que o veja,
pois está muito bem guardado.
           
Mora na rua de Santo André,
desta nossa cidade bem branca,
donde nunca sairá pelo seu pé,
pois aqui há quem isso garanta.

Lá bem longe naqueles recantos,
a Boniqueira deu forma e cor,
ao bem mais popular dos santos,
que doou a um seu admirador.

À Boniqueira Joana Santos
e à sua magia rendido
Da arte do barro os encantos,
há muito que foi seduzido.