quarta-feira, 14 de março de 2018

Estremoz - Rua 31 de Janeiro


1 - RUA DE SANTA CATARINA (1891) – Ao fundo ainda não existe a Fonte do Hospital
Real de São João de Deus. Os candeeiros da iluminação pública estão implantados
nas paredes dos prédios. Fotografia de C. J. Walowski (1891).

Estudo de toponímia local

 “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.” (Camões). É assim que os topónimos identificadores das ruas são modificados no decurso do tempo. A presente crónica procura trazer à luz do dia, as razões históricas que estiveram na origem das alterações sucessivas dum topónimo estremocense, conhecido actualmente como Rua 31 de Janeiro.
Guerra da Restauração
Em 1580 ocorreu a ocupação filipina de Portugal, tendo o nosso país vivido sob o domínio espanhol até à Restauração da Independência em 1 de Dezembro de 1640. Nesta data ocorreu em Lisboa um golpe de estado revolucionário que se propagou a todo reino e levou à aclamação de D. João IV como rei de Portugal. A partir daquela data, Portugal travou com Espanha a chamada Guerra da Restauração. Esta só terminaria a 13 de Fevereiro de 1668 com a assinatura do Tratado de Lisboa entre Afonso VI de Portugal e Carlos II de Espanha, no qual é reconhecida a total independência de Portugal.
No decurso da Guerra da Restauração houve necessidade de defender o reino da ofensiva espanhola, mormente em localidades fronteiriças, as quais tiveram que ser fortificadas. Foi o que aconteceu em Estremoz que ganhou importância na contextura militar nacional, uma vez que funcionava como 2ª linha de defesa do território, sobretudo em termos logísticos, já que armazenava armas e mantimentos e aquartelava tropas.
Foi D. João IV que em 1642 ordenou ao engenheiro militar holandês João Pascácio Cosmander, o traçado da futura muralha poligonal abaluartada que cinge o centro histórico num perímetro com mais de 5 Km, cuja maior parte ainda hoje existe. Após a morte de Cosmander em 1648, foi o engenheiro-militar francês Nicolau de Langres, que a partir de 1662 foi encarregue das obras que terminaram em 1671, sob a direcção de Luís Serrão Pimentel, engenheiro-mor do exército. As portas monumentais da muralha só foram concluídas entre 1676 e 1680. Uma dessas portas que ainda hoje estabelece comunicação com as estradas para Sousel-Fronteira e Veiros-Monforte-Portalegre, é a Porta de Santa Catarina, que inclui um nicho de devoção à padroeira, Santa Catarina de Alexandria. Em termos toponímicos e na perspectiva da época seria natural designar por Rua de Santa Catarina a rua que até ao Hospital Real de São João de Deus dava acesso aquela porta, o que veio a acontecer. A partir do Hospital e até à porta a designação toponímica recebida pelo arruamento foi a de Largo de Santa Catarina.
Proclamação da República
A 5 de Outubro de 1910 ocorre o derrube da Monarquia, fruto da acção doutrinária e política do Partido Republicano Português, criado em 1876 e cujo objectivo essencial foi desde o princípio, a substituição do regime. As questões ideológicas não eram primordiais na estratégia dos republicanos, uma vez que para a maioria dos seus simpatizantes, bastava ser contra a Monarquia, a Igreja e a corrupção política dos partidos tradicionais.
Na noite de 3 para 4 de Outubro de 1910, eclodiu em Lisboa um Movimento Revolucionário impulsionado pelo Partido Republicano e apoiado pela Marinha de Guerra e por forças do Exército. Após dois dias de combate, o Movimento Revolucionário triunfa e a República é proclamada na manhã de 5 de Outubro das janelas da Câmara Municipal de Lisboa e é constituído imediatamente um Governo Provisório, presidido pelo Dr. Teófilo Braga, que assume como tarefa fundamental uma mudança radical nas instituições vigentes.
Com a queda da Monarquia a 5 de Outubro de 1910, há uma mudança de paradigma. Uma Monarquia com oito séculos é substituída por uma República que tomou o poder nas ruas de Lisboa e depois de o proclamar às varandas da Câmara Municipal, o transmitiu para a província à velocidade do telégrafo.
Em Estremoz quem recebeu o telegrama do Ministro do Interior António José de Almeida anunciando a proclamação da República em Lisboa, foi o empresário João Francisco Carreço Simões (1893-1954) seu amigo pessoal e igualmente membro do Partido Republicano. Seria ele a proclamar a República no dia 6 de Outubro de uma sacada da Câmara Municipal de Estremoz, da qual viria a ser Vice-Presidente.
Na sequência da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, as instituições e símbolos monárquicos (Rei, Cortes, Bandeira Monárquica e Hino da Carta) são proscritos e substituídos pelas instituições e símbolos republicanos (Presidente da República, Congresso da República, Bandeira Republicana e A Portuguesa), o mesmo se passando com a moeda, as fórmulas de franquia postais e os topónimos.
A 1ª República decretou em 1911 uma “Lei de Separação da Igreja do Estado”, de acordo com a qual a religião católica apostólica romana deixou de ser a religião do Estado, cuja laicidade passou a ser defendida. A influência secular da Igreja Católica fazia-se sentir mesmo a nível de toponímia, pelo que os republicanos entenderam que a mesma deveria ser laicizada. Daí que em Estremoz, a Rua de Santa Catarina tenha sido rebaptizada laicamente como Rua 31 de Janeiro, em memória de um marco importante na luta pela implantação da República, que foi a Revolta de 31 de Janeiro de 1891, primeiro movimento revolucionário que teve por objectivo a implantação do regime republicano em Portugal.
Aquela revolta eclodiu ao início da madrugada no Porto, cidade onde foi proclamada a República, na varanda da Câmara Municipal. A revolta surgiu como reacção às cedências do Governo (e da Coroa) ao ultimato britânico de 1890 por causa do Mapa Cor-de-Rosa, que pretendia ligar, por terra, Angola a Moçambique. Cerca das 10 horas da manhã, os revoltosos são forçados a render-se, atingidos pela fuzilaria e pela artilharia da Guarda Municipal. A Revolta saldou-se por 12 mortos e 40 feridos entre os revoltosos civis e militares, os quais foram julgados e condenados em Conselhos de Guerra realizados a bordo de navios, ao largo de Leixões.
28 de Maio
Desde os primórdios que a I República Portuguesa deu indícios de fragilidade. Num período de 16 anos, que findou a 28 de Maio de 1926, a I República Portuguesa teve 7 Parlamentos, 8 Presidentes da República, 39 Governos, 40 Chefes de Governo, uma Junta Constitucional e uma Junta Revolucionária. O clima era de instabilidade e o país encontrava-se permanentemente à beira da guerra civil.
A de 28 de Maio de 1926 ocorreu um pronunciamento militar de cunho nacionalista e antiparlamentar, que derrubou a I República Portuguesa e implantou uma Ditadura Militar, que eufemisticamente se viria a autodenominar Ditadura Nacional. Após a aprovação da Constituição de 1933, a Ditadura Nacional rebaptizou-se com a designação de Estado Novo, regime autoritário de partido único, chefiado sucessivamente por Oliveira Salazar e por Marcelo Caetano, que se manteve no poder até 25 de Abril de 1974.
A necessidade de apagar todos os vestígios locais de republicanismo e de num acto de vassalagem homenagear o então “Dono disto tudo”, terão estado na origem dos responsáveis municipais de então, terem travestido a Rua 31 de Janeiro em Rua Dr. Oliveira Salazar.
25 de Abril
O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do Movimento das Forças Armadas – MFA, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas.
Um Esquadrão do RC3, comandado pelo Capitão Andrade Moura, tendo como adjunto o Capitão Alberto Ferreira e com a participação do 1º Sargento Francisco Brás, teve papel determinante no desfecho dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Lisboa. Daí que à sua chegada a Estremoz no dia 27 de Abril, tenha sido objecto de honras militares e de aclamação popular, junto ao quartel do Regimento. Foi o reconhecimento local e possível pela liberdade reconquistada.
Logo a seguir ao 25 de Abril, opositores ao regime reuniram-se numa casa da rua do Mau Foro, vulgo Rua Alexandre Herculano. Ali funcionaria mais tarde a primeira sede do PS. Tinha sido ali a sede do Círculo Cultural de Estremoz, associação cultural de antes de Abril, no tempo do Dr. Luís Pascoal Rosado e cuja história está ainda por fazer. Era propriedade dos irmãos José e Afonso Costa. Ali se preparou o primeiro 1º de Maio. Eu e o meu pai estávamos lá. O camarada Binadade Velez, comunista da clandestinidade e que já estivera preso, levava uma lista de ruas com nomes ligados ao fascismo, as quais entendia ser preciso mudar. Uma delas era a Rua Dr. Oliveira Salazar, o que logo ali teve o acordo de todos. E foi assim que um topónimo, associado a um ditador de tão triste memória, entrou na rampa de lançamento para ser banido do nosso quotidiano diário, o que veio a ser concretizado pelo poder municipal, democraticamente legitimado. E foi assim que a rua foi rebaptizada laica e republicanamente com a sua designação anterior: Rua 31 de Janeiro. E viva a Liberdade!
Cronista do E, toponomista, republicano e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 195, de 08-03-2018) 

2 - RUA DE SANTA CATARINA (Entre 1901 e 1909) – Ao fundo é visível a Fonte do Hospital
Real de São João de Deus. Esta fonte foi mandada construir pela Câmara de 1834, no
muro contíguo à ermida de São Brás e a edilidade de 1901 ordenou que fosse removida
para o local onde ainda hoje se encontra. Os candeeiros da iluminação pública estão
agora implantados nos passeios. Em segundo plano do lado direito é visível um típico
carro  de canudo alentejano e na frontaria do prédio contíguo é perceptível  um letreiro
que parece dizer “HOTEL GRADE”. Entre as crianças que brincam na rua, uma delas que
está agachada, parece estar a aparar um pião. A imagem é de um bilhete-postal ilustrado,
edição MALVA (Lisboa nº 697). No verso a data do carimbo de expedição dos correios é de 1909.

3 - RUA DE SANTA CATARINA (Entre 1901 e 1909). A legenda do bilhete-postal ilustrado
é “ESTREMOZ – Rua de Santa Catarina, (hoje Rua 31 de Janeiro). A imagem ainda que
colorida  é a mesma da figura 2. A edição deste bilhete-postal ilustrado, de editor não
identificado, terá ocorrido entre 1910 e 1915, já que esta é a data de circulação mais
antiga que eu tenho num bilhete-postal ilustrado desta série.

3 - RUA DE SANTA CATARINA (Entre 1901 e 1909). A legenda do bilhete-postal ilustrado
é “ESTREMOZ – Rua de Santa Catarina, (hoje Rua 31 de Janeiro). A imagem ainda que
colorida  é a mesma da figura 2. A edição deste bilhete-postal ilustrado, de editor não
identificado, terá ocorrido entre 1910 e 1915, já que esta é a data de circulação mais
antiga que eu tenho num bilhete-postal ilustrado desta série.

5 - RUA DR. OLIVEIRA SALAZAR (Anos 60 do séc. XX). Fonte do Hospital Real de São
João de Deus. Bilhete-postal ilustrado editado por FOTO TONY.

segunda-feira, 12 de março de 2018

À mesa com o Franco-atirador


A Meca, alvo das peregrinações gastronómicas do Franco-atirador:
Restaurante “Kimbo”, na Rua 31 de Janeiro, em Estremoz.

O prazer de comer
Sou publicamente conhecido pelo exercício continuado da crítica social, direito cívico e democrático do qual não abdico. Daí que alguns, porventura despeitados, me apodem de “má-língua”. Trata-se de um vitupério, duplamente falso. Em primeiro lugar, porque como traço de carácter, sou incapaz de enganar os outros e “vender gato por lebre”, como alguns persistem em fazer. Em segundo lugar, porque as minhas dotadas papilas gustativas, superiormente protegidas pelo palato, me transmitem por via neuronal, o seu parecer incontestável sobre aquilo que, visando retemperar as forças, devo ou não consumir às refeições.
Comer, não é um mero acto de sobrevivência. É também o exercício de uma filosofia hedonista, que transfigura o próprio acto de comer e está na génese de uma mudança de paradigma, o salto qualitativo entre dois patamares distintos: a necessidade de comer e o prazer de comer. Que o diga a Fátima, minha companheira, com a qual casei há 35 anos e que assumiu a espinhosa missão de me tratar da alma e do corpo, muito em especial da barriga.
A Fátima é excelente cozinheira e regala-me os sentidos com os petiscos que confecciona. Pese, embora essa condição, de vez em quando vamos almoçar ou jantar fora, já que na perspectiva da cozinheira, a qual eu também perfilho, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. 
As idas ao “Kimbo”
Um restaurante que nos habitámos a frequentar foi o “Kimbo”, na Rua 31 de Janeiro, em Estremoz. Ali, o manda-chuva é o João, patrão daquilo tudo e uma espécie de homem dos sete ofícios. À sua condição de patrão, acrescem as de cozinheiro exímio, chefe de sala, chefe de vinhos e empregado de mesa. A Paula, sua cara-metade, dá-lhe o apoio necessário. Na cozinha reina a “chef” Manuela, secundada pela Fátima, não a minha, mas igualmente Fátima.
A Ementa
A Ementa contempla entradas, omeletas, pratos regionais, carnes e peixes grelhados ou fritos, especialidades da casa, doces e frutas variadas. As doses são bem aviadas e é excelente a relação qualidade - preço.
Os pratos do dia variam ao longo da semana e deles destaco a nível de peixes: massada de peixe, bacalhau com espinafres, bacalhau com puré de grão, bacalhau torricado, caldeirada de lulas, lulas à espanhola, lulas grelhadas, polvo com broa e polvo à lagareiro. Quanto a carnes, saliento: borrego à lagareiro, caldeirada de borrego, espetada de peito de frango com ananás, pato no forno com laranja, rancho à portuguesa e sopa de pedra.
Livro de reclamações
A frequência do “Kimbo” agradou-me desde a primeira hora. Daí que certa vez, quando o João me perguntou no final:
- Então que tal, Professor?
A minha resposta não o podia ter surpreendido mais:
- Traga-me o livro de reclamações, se faz favor!
Perguntou-me então:
- Não me diga que hoje não gostou, Professor?
A minha resposta só podia ser uma:
- É claro que adorei como habitualmente, amigo João. Mas onde é que eu posso registar um rasgado e merecido elogio, se não for no livro de reclamações?
E ainda argumentei filosoficamente:
- Então um elogio não é uma reclamação negativa ou seja uma ausência de reclamação?
A resposta do João foi imediata:
- Vai desculpar Professor, mas o livro oficial de que dispomos é para registar reclamações e não a ausência de reclamações.
Vencido, mas não convencido, ainda rematei:
- Está mal.
E a conversa ficou por ali.    
Livro de elogios
Como não podia deixar de ser, dada a qualidade do serviço prestado, continuei a frequentar o “Kimbo” e a conversa no final ia sempre parar ao mesmo: o pedido do livro de reclamações para registar o meu elogio, o que sempre me era amigavelmente declinado. Até que um dia e perante a minha estupefacção, o João me disse:
- Já que tanto insistiu, acabei por descobrir a existência de um livro de elogios. Vou já buscá-lo.
Acabei por saber tratar-se de um livro não oficial, fruto de um projecto de Cristina Leal, que partiu da constatação do absurdo que era existir um livro de reclamações e não existir um livro de elogios. Daí ter criado um livro onde se pode reconhecer o que é bom e deixar isso registado.
O meu elogio
Naturalmente que se impunha dar conta aqui do meu elogio, com o qual tive o privilégio de inaugurar o livro, em Agosto passado:
“Sou um cliente de excelência. Não da minha excelência, mas do padrão total da excelência do “Kimbo”, que atravessa transversalmente e sempre com 5 estrelas, parâmetros distintos mas complementares: excelente ambiente, elevado padrão de atendimento, resposta rápida da cozinha, a que há que acrescentar o fascínio dos pratos confeccionados sobre os sentidos que têm a ver com a gastronomia (visão, olfacto e paladar). É caso para dizer:
- Obrigado, João e Companhia. Parabéns.
Recomendamos sinceramente a frequência deste restaurante de excelência.”

Hernâni Matos
Cronista do E, gastrónomo. enófilo e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 195, de 08-03-2018)
Publicado inicialmente a 12 de Março de 2018

sexta-feira, 9 de março de 2018

O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia


Imagem reproduzida com a devida vénia
de Crescer (https://revistacrescer.globo.com).


À Catarina, minha filha:


É bem conhecido o especial carinho que nutro pelas manifestações orais da cultura popular: cancioneiro, provérbios, gíria, lengalengas, adivinhas, etc. Daí que ninguém estranhe que as procure divulgar de uma forma pedagógica, através da sua integração nos meus escritos. Por isso vos falo hoje dos trava-línguas. Trata-se de frases difíceis de pronunciar como resultado da semelhança sonora das suas sílabas. Daí que sejam utilizados por educadores de infância, visando aperfeiçoar a pronúncia e exercitar a oralidade da língua. Acabam por se tornar numa brincadeira que motiva as crianças e as desafia a reproduzi-los sem errar, o que acontece com frequência, causando risos e alegria. Por fim, acabam por perceber que quanto mais rápido procuram verbalizar, maior é a probabilidade de se enganarem.
Um trava-línguas que tem para mim especial significado é este:
- O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia.
A minha filha que hoje tem hoje 32 anos, em miúda pronunciava os "r" como se fosse chinesa. O resultado fonético era este:
- O lato loeu a lolha da galafa do lei da Lúcia.
Então eu repetia tudo de novo e ela pedia-me para repetir também, porque já ia dizer bem. E para meu desespero dizia exactamente a mesmo coisa, sem tirar nem pôr.
 O "r" para ela era "l". Contudo, a vontade que ela tinha de ultrapassar aquela dificuldade que eu lhe apontava, levou a convencer-se que já dizia bem, quando continuava a dizer exactamente a mesma coisa. Mas eu continuei a insistir, até que um dia, saiu cristalino da sua voz doce, o resultado esperado:
- O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Foi para mim um raro momento de felicidade, por ela ter conseguido dar um salto dialéctico, só comparável ao que passou quando um dia estava a gatinhar em casa de um amigo meu que já lá está e de repente se pôs em pé, a andar, para nunca mais gatinhar.
São coisas que marcam um homem na vida...



quinta-feira, 8 de março de 2018

Chove em Santa Maria


Estremoz - Igreja Matriz de Santa Maria

Chove que Deus a manda. A chuva tudo molha, inclusive a Casa de Deus (Leia-se Igreja Matriz de Santa Maria no Castelo). Chove em Estremoz, chove no Castelo, chove em Santiago. Só não estamos no filme de HelvioSoto, com Jean-Louis Trintignant e Annie Girardot, datado de 1975. Estamos em Estremoz, onde no Ano de Graça de 2018, os pombos vadios têm livre-trânsito municipal para defecarem onde lhes der na real gana, por tal convir à sua natural necessidade.
Há muitas vítimas de tal monumental e continuada defecação. Desta feita foi o Templo situado no coração do Centro Histórico da cidade. Os telhados povoados pelas necessidades dos columbídeos foram lavados pela chuva abundante e os dejectos escorreram por aí baixo, causando entupimentos, que fizeram com que chovesse no interior da Casa de Deus. Eu sei, porque passei por lá. Que querem que vos diga? Apenas uma coisa. Que estes animais de penas não deviam ter livre-trânsito municipal para arrear o calhau onde lhes aprouver.

Hernâni Matos
Cronista do E, ambientalista e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 195, de 08-03-2018)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Pedonalização da rua de Santo André


Uma imagem habitual do estacionamento na rua de Santo André.

A rua de Santo André, que na parte baixa do Centro Histórico de Estremoz, liga a Praça Luís de Camões ao Largo dos Combatentes da Grande Guerra, irá ser encerrada ao trânsito automóvel e ficará reservada ao trânsito pedonal.
PEDU inicial e PEDU final
A pedonalização da rua de Santo André está prevista no Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano do Município de Estremoz (PEDU ETZ). Este foi objecto de um contrato celebrado a 31 de Maio de 2016, em Santa Maria da Feira, entre a Autoridade de Gestão do Programa Operacional Regional do Alentejo e o Município de Estremoz.
O PEDU inicial contém a medida “4.5 Promoção de estratégias de baixo teor de carbono para todos os tipos de território, nomeadamente as zonas urbanas, incluindo a promoção da mobilidade urbana multimodal sustentável e medidas de adaptação relevantes para a atenuação”. É nesta medida que se insere a Intervenção “Criação de Via Pedonal - Rua de Santo André”, a ser promovida pelo Município de Estremoz, a que corresponde um investimento público de 150.000 €, dos quais 127.000 € (85%) são financiados pelo FEDER.
Por sua vez, o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano 2015 | 2020 do Município de Estremoz – PEDU final, reitera a intenção da referida intervenção, que se traduzirá no encerramento do trânsito na rua de Santo André. Com tal intervenção, visa o Município eliminar os problemas relacionados com o estacionamento ilegal, que provoca congestionamento no atravessamento do trajecto, bem como incentivar a mobilidade pedonal e a dinamização do comércio local. Este último documento fixa o período temporal da intervenção em 2016-2018 e revela o custo da intervenção como sendo 170.000 €, montante que substituiu o investimento público de 150.000 €, anteriormente previsto.
Consultando o website do “ALENTEJO 2000”, Programa Operacional Regional do Alentejo para o período 2014-2020, disponível em: http://www.alentejo.portugal2020.pt/index.php/projetos-aprovados/category/73-projetos-aprovados, constata-se que aquela intervenção não integra o conjunto de operações aprovadas à data de 30 de Setembro de 2017, o que causa alguma perplexidade, uma vez que já nos encontramos no ano em que deveria findar o período temporal da intervenção. Faço votos para que a pedonalização prevista para a rua de Santo André, transvaze do papel para a rua, do que tenho dúvidas, uma vez que não é conhecido qualquer projecto de pormenor.
História possível duma rua
A rua de Santo André recebeu esta designação, por se localizar nas traseiras da monumental Igreja Paroquial de Santo André, imponente no seu estilo barroco, cuja construção foi iniciada em 1705 e que viria a ser inaugurada em 15 de Setembro de 1725. A 8 de Outubro de 1940, abateu a nave central da Igreja, que reconstruída em 1944, viria a ser demolida em 1960, para ali ser edificado o actual Palácio da Justiça, inaugurado a 3 de Abril de 1964.
A rua de Santo André remonta ao séc. XVIII e tem início no nº 1, casa setecentista com sacadas de ferro, a que há que juntar outras duas em iguais circunstâncias, situadas nos nºs 12 e 30, bem como outra mais modesta, identificada com o nº 10, cuja fachada exibe um registo de 4 azulejos com duas alminhas e a inscrição P.N.A.M. Trata-se de uma manifestação de religiosidade popular, envolvendo uma representação de almas de defuntos no Purgatório, implorando aos vivos que orem por elas, a fim de se poderem purificar e ascender ao Céu.
A rua, de sentido único, nos anos 50 do séc. XX chegou a ter circulação automóvel no sentido inverso. Actualmente vocacionada para o comércio, desde o derrube da Igreja de Santo André em 1960 que não dispõe à entrada de uma placa toponímica. Foi uma das poucas que na parte baixa do Centro Histórico não foi vítima da sanha alcatroadora do Município, nos anos 90 do séc. XX.
Estado actual da rua
A degradação da rua é notória, sendo de salientar múltiplas situações chocantes: - Estacionamento ilegal por parte de quem não respeitando os direitos de cidadania dos outros, congestiona o trânsito sem ser penalizado, devido a inércia da PSP local; - Piso irregular, devido a múltiplos abatimentos causados pela travessia de veículos pesados e pela cedência de esgotos com tampa de laje, provavelmente do 1º quartel do século passado; - Passeios que aqui e além têm pedras soltas ou ausência de pedras, devido a múltiplas intervenções de prestadores de serviços, que a fiscalização do Município por inércia não monitorizou; - Restauração e comércio da zona, que vertem todos os desperdícios em 4 contentores ali existentes, à excepção das garrafas que depositam no vidrão, ignorando olimpicamente os ecopontos situados no largo da República e na rua 5 de Outubro; - Lixo junto aos contentores e que cai dos mesmos, quando o seu conteúdo é vazado pelos cantoneiros de limpeza na camioneta do lixo; - Contentores que são lavados e desinfectados com pouca frequência; - Falta de remoção de vegetação espontânea por parte de cantoneiros de limpeza; - Varredura cuja qualidade oscila entre a deficiência e a ausência da mesma; - Depósito pelo público de lixos grossos junto aos contentores, fora dos dias a isso destinados; - Bêbados que vão urinarem junto às paredes do Palácio da Justiça; - Deficiente iluminação da rua; - Autismo por parte de quem devia fazer cumprir a lei e não faz, fingindo desconhecer todo o desperdício e porcaria que por ali grassa.
Pedonalizar, sim! Mas como?
Morador na rua desde 1973 (há 45 anos), encaro com bons olhos a pedonalização equacionada pelo Município, uma vez que a mesma se pode traduzir no aumento da qualidade de vida de quem por aqui vive e trabalha. Todavia e uma vez que desconheço a existência de qualquer projecto de pormenor, não posso assegurar que entre mim e o Município possa existir identidade de pontos de vista acerca da pedonalização.
A meu ver, esta deveria passar por: - Remover toda a calçada e passeios; - Renovar os esgotos e a rede de distribuição de água às casas; - Utilizar a abertura de valas para implantar uma conduta que pudesse alojar cabos de fornecimento de sinal eléctrico, telefónico ou de televisão, que permitisse eliminar toda a parafernália de cabos que inesteticamente cruzam a rua de um lado para o outro, com os quais os fornecedores de sinal têm poluído visualmente a cidade; - Eliminar as sarjetas; - Calcetar a rua, de modo que a calçada ficasse ligeiramente inclinada da periferia para o eixo central, no qual existiriam espaçadamente grelhas de ferro para escoamento de águas pluviais; - Levar os proprietários dos edifícios a fazer escoar os algerozes dos telhados directamente para a rede de escoamento de águas pluviais; - Implementar um ecoponto no local onde se encontram actualmente os contentores; - Pavimentar a rua com calçada à portuguesa, preferencialmente com representações do Figurado em Barro de Estremoz, já que a sua Produção integra a Lista Representativa do Património Cultural da Humanidade; - Melhorar a iluminação da rua.
Com uma pedonalização executada do modo apontado, a rua ficaria catita e a intervenção poderia constituir um projecto-piloto para que Estremoz pudesse, de facto, ter mais encanto. Os munícipes agradeceriam.

Hernâni Matos
Morador há 45 anos na rua de Santo André
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

E depois da classificação?


Francisca de Matos (Professora)

O passado dos “Bonecos de Estremoz” conta uma história multissecular que conseguiu, apesar das dificuldades, resistir à voracidade do tempo. A sua classificação como Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, permitiu aos “bonecos”, e aos artesãos que restam, ganhar o presente. Isso é certo.
Mas a atribuição desse selo, por si só, não garante o futuro da arte. Esse terá que ser assegurado através de um labor consistente – e persistente - de formação, de incentivo e de mobilização por parte dos responsáveis municipais. É que os artesãos que restam – e já não são muitos – não vão para novos. Há, pois, que avançar rapidamente com medidas concretas de apoio financeiro e logístico para que eles possam transmitir o seu saber aos mais novos, pois serão estes que um dia poderão assegurar a continuidade do figurado em barro de Estremoz. Se a classificação como Património Imaterial também garantir isto, então sim, o trabalho que verdadeiramente interessa estará feito, e bem feito.
Como de costume, no calor dos momentos que antecederam a classificação pela UNESCO foram feitas muitas promessas e ao mais alto nível da hierarquia municipal: “Questionado relativamente ao que mudaria no município de Estremoz, se o Figurado em Barro entrasse para a Lista Representativa, Luís Mourinha aponta a “visão” do município, em termos de “patrocínios de várias atividades”; “Seria igualmente priorizada, como “obrigação do município” a construção de um centro “dedicado aos bonecos e ao barro”,  (Luís Mourinha, 21/11/2017, in www.radiocampanario.com). Promessas reiteradas depois dessa mesma classificação: “criação de “um equipamento” lúdico, de estudo e formação, com “permanência de pessoas que possa praticar a arte”, sendo igualmente necessário cativar os jovens para a arte.” (Luís Mourinha, 07/12/2017, in www.radiocampanario.com).
Com tantas e tão ambiciosas garantias, não restam dúvidas: as expectativas são altas, até porque os “bonecos” e os artesãos que os criaram, e criam, assim o merecem. Que o futuro nesta terra, por uma vez, não seja só “para o boneco”…

Francisca de Matos
Professora
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)


Hernâni Matos

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Estremoz - A selva urbana


ESTREMOZ - Pombos na frontaria da Igreja Conventual de São Francisco de Assis.

Foge que é pombo
Os pombos vadios hospedados na Mercearia Luís Campos foram no início de Setembro passado, desalojados do seu hotel de 5 estrelas, mesmo no centro da cidade. A isso foram obrigados pelo camartelo a soldo da edilidade estremocense. Razão pela qual se viram obrigados a migrar para outros locais, onde continuam a ser indesejáveis, mas onde impõem a sua presença, graças à passividade camarária que permite que eles continuem a ser uma praga.
Um número considerável deles alojou-se na frontaria da Igreja Conventual de São Francisco de Assis. Quem não gosta da sua presença ali, são os fiéis que movidos pela sua legítima fé, frequentam a vetusta paroquial. Alguns mais avisados e com facilidade de locomoção, entram e saem rapidamente não vá o Diabo tecê-las e faça com que sejam atingidos pelos projécteis fecais dos columbídeos. O espaço cívico de convívio que sempre foi o adro da Igreja transformou-se assim numa zona de bombardeio que inclui também o Cruzeiro de São Francisco. É grande o desagrado com a presença daquelas aves que por ali assentaram arraiais, já que todos temos consciência que não são “Pombas do Espírito Santo”, mas pombos vadios que constituem um problema real a que urge fazer frente em nome da sanidade, da higiene e do bem-estar dos cidadãos.  
Árvores, para que vos quero?
A arborização de uma urbanização exige a escolha de espécies arbóreas com características botânicas adequadas, as quais devem ser tidas em linha de conta por projectistas, urbanizadores e agentes de fiscalização. Qualquer deles deve ter presente que as árvores constituem um importante elemento natural na composição do meio urbano, contribuindo para a qualidade de vida da população residente. É que no espaço urbano, as árvores desempenham múltiplas funções: social, cultural, ambiental, ecológica, arquitectónica e patrimonial.
A escolha do tipo de árvores a plantar numa urbanização é uma questão delicada, que exige estudo prévio, já que são múltiplos os requisitos a que as árvores devem obedecerem. Um deles é o sistema radicular ser profundo, evitando-se o uso de árvores com sistema radicular superficial, que pode danificar ruas, acostamentos, calçadas, muros, pátios, fundações dos prédios, cablagem subterrânea, esgotos, canalização de água e de gás.
A situação anterior é a que está a ocorrer na Rua Padre do Carmo Martins e exige uma intervenção rápida e eficaz por parte da edilidade estremocense. Trata-se de uma medida que passa necessariamente pelo abate das árvores ali existentes e respectiva substituição por outras com as características adequadas.
Um caso que não é único
O que se passa na Rua Padre do Carmo Martins não é, infelizmente, um caso isolado. Ali perto, na Rua Frei Nuno de Santa Maria, as árvores plantadas já não são as primitivas, as quais tiveram de ser abatidas, porque além dos problemas suscitados pela arborização da Rua Padre do Carmo Martins, também largavam bagas que manchavam os muros e os automóveis dos moradores.
Cama, mesa e…roupa suja
Mais recentemente ocorreu outro abate de árvores, agora na Praceta dos Casais de Santa Maria. Quem por ali transita, vê a sua atenção despertada por um círculo de cepos, sinalizados por fita bicolor, vermelha e branca. Faz lembrar um parque de merendas com ornamentação festiva, como que a convidar excursionistas para ali comerem uma bucha.
As árvores sacrificadas pela moto serra municipal, tinham uma copa abundante e produziam bagas que levaram à instalação no local de uma basta colónia de pássaros, que ali encontrou cama e mesa. Só roupa lavada é que não, uma vez que nos estendais limítrofes, a roupa aparecia suja. No local, bagas e excrementos eram omnipresentes, causando incómodos a vários níveis.
Na sequência da intervenção municipal, supõe-se que as aves desalojadas migraram para os campos de onde tinham vindo, atraídas pelo isco mirífico das bagas.
Centro Histórico a sofrer
Estremoz já foi cidade branca no dizer inspirado do poeta Silva Tavares, nosso prestigiado conterrâneo. Acontece que hoje já não é assim, entre outras razões como consequência de toda a cablagem negra que a EDP e os fornecedores de sinal telefónico ou de televisão estenderam pela fachada dos edifícios, desfeando-os e fazendo com que uma parafernália de cabos, atravessem as ruas de um lado para o outro, lembrando lianas numa floresta tropical. Trata-se de um abjecto crime de poluição visual e não só. O mesmo começou há muito e teve continuidade assegurada, graças à inércia municipal. A edilidade revelou-se incapaz de implementar uma alternativa não agressiva, que passasse pelo enterramento de toda a cablagem em condutas, das quais irradiasse até à entrada dos edifícios. Tal não foi feito.
O auge do desfeiamento das fachadas da cidade foi agora consumado no Largo de D. Dinis, núcleo nobre do Centro Histórico de Estremoz. É caso para perguntar se é assim que o Município quer candidatar o Centro Histórico de Estremoz a Património Mundial da Humanidade? É com a actual estratégia inspirada na máxima francesa do “Laissez faire, laissez passer”? É que esta não é mais que um emblemático chavão do liberalismo económico, na versão pura e dura de capitalismo que defende que o mercado deve funcionar livremente. E vêm-nos depois com o estafado slogan: - “Estremoz tem mais encanto!”. Da minha parte, só uma resposta é possível: - “Qual encanto, qual carapuça?”.


(Texto publicado no jornal E nº 193, de 08-02-2018)

ESTREMOZ - Danos causados por árvores com sistema radicular superficial na
Rua Padre do Carmo Martins.

ESTREMOZ - Cepos de árvores abatidas na Praceta dos Casais de Santa Maria.