quarta-feira, 20 de julho de 2016

54 – O Aguadeiro - 5


Aguadeiro.
Quirina Marmelo (1922-2009).
Colecção particular.

Literatura de tradição oral 
O (A) aguadeiro (a) tem múltiplos averbamentos na nossa literatura de tradição oral.
No que respeita a ADAGIÁRIO registo: “Janeiro geadeiro, Fevereiro aguadeiro”.
No âmbito da GÍRIA POPULAR são conhecidos os termos: Aguadeira (Capa que não deixa passar a água), Aguadeira (Petisco que abre o apetite), Aguadeiras (Penas que acompanham as asas das aves de rapina até ao rabo), Aguadeiro (Capote de saragoça, próprio para resistir à água - Alentejo), Aguadeiro (Chapéu com a orla da aba voltada para cima e que retém a água quando chove, pelo que é necessário desabá-lo - Alentejo), Aguadeiro (Ciclista que acompanha a equipa), Aguadeiro (Designação pejorativa dada a cocheiro que conduz mal), Aguadeiro (Homem encarregado de introduzir água salgada na salina), Aguadeiro (Feixe de linho pronto para demolhar).
No domínio das ALCUNHAS ALENTEJANAS, conheço apenas uma: Aguadeiro – Alcunha outorgada a homem ou mulher que vendia água, antes de existir água canalizada (Aljustrel, Casto Verde e Ourique).
Em termos de ANTROPONÍMIA e de acordo com o site http://forebears.io que dá acesso a bases de dados genealógicas, o apelido Aguadeiro será comum a 37 pessoas em Portugal e terá resultado da transformação da alcunha em sobrenome, pelo que sendo aguadeiro uma antiga profissão de âmbito nacional, é normal que a distribuição geográfica seja bastante vasta.
Quanto a PREGÕES ALENTEJANOS, Eurico Gama, em “Os Pregões de  Elvas” (1954), refere os seguintes: - “Á-gua-dê-ro!; - Á-gua fres-qui-nha!”; - “A tos-tão a bar-ri-gada!”; - “S’tá aqui o home da água!”; - “É um céu aberto a água da Fonte Nova!”; - “A água da Fonte Nova percorre as veias de toda a criatura!”.
Na área da TOPONÍMIA, tenho conhecimento da existência da Rua dos Aguadeiros (Peniche, Faro, Portimão e Quarteira) e do Beco dos Aguadeiros (Lisboa).
No que concerne a CANCIONEIRO POPULAR, apenas refiro que Lopes da Areosa no Romance  do  Senhor  da  Serra (d’Arga), nos diz que: “…(Os meus passos de romeiro /   todos os anos lá vão) / e nesta peregrinação / não encontro o aguadeiro / dos tempos que já lá vão /…”.
A nível de LENDAS, há a referir a “Lenda da Bilha de S. Jorge”. De acordo com ela, no dia da Batalha de Aljubarrota, os exércitos português e castelhano encontravam-se frente a frente, sob um sol escaldante. Nuno Álvares Pereira temeu mais a sede que o exército inimigo, pelo que incumbiu Antão Vasques de procurar água, tarefa ingrata, dado a secura dos ribeiros. Desesperado porque não conseguia encontrar água, Antão Vasques apeou-se do cavalo, ajoelhou-se e orou a S. Jorge, a quem implorou que o auxiliasse. Surgiu então uma camponesa com uma bilha de água, que se enchia quando dela se bebia, saciando a sede e recompondo as forças e o espírito. Quando os castelhanos atacaram, convictos de encontrar os portugueses debilitados pela espera e pela sede, estes resistiram com firmeza e, para grande espanto dos castelhanos, venceram a batalha. 
No círculo das ANEDOTAS POPULARES, apenas registo uma: VALORIZAÇÃO INSTANTÂNEA - Um aguadeiro percorria as ruas de uma praça-forte sitiada, carregando dois cântaros de água, a qual apregoava: - “A pataco o cântaro, a pataco…”. Quando um estilhaço de granada rebenta um dos cântaros, o homem não se atrapalhou, modificando apenas o pregão: - “A dois patacos o cântaro, a dois patacos…”.
Hernâni Matos

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Auto do Arraial de Santo António


Santo António. Imagem seiscentista em lenho dourado,
do altar homónimo do Convento de São Francisco em
Estremoz,  situado no lado esquerdo da Capela Maior
e referenciada nas Memórias Paroquiais de 1758.

A acção decorre há duzentos anos atrás e os personagens são bem conhecidas.
Foi do agrado geral, o arraial de Santo António, que na respectiva noite animou a rua da Paróquia e a Praça Luís de Gamões, frente à Casa das Leis. A iniciativa coube à Comissão Fabriqueira, visando obter fundos para as obras sociais da Paróquia.
No arraial chamaram a atenção algumas mesas, as quais passamos a referir:
- MESA DA PARÓQUIA – Presidida por Dona Maria das Dores, grande devota de Santo António. Nela tiveram lugar a sua afilhada Maria da Fé e os doutores Cruz, Martim e Cariz, estes últimos, organizadores do arraial, sob os auspícios de Dona Maria das Dores. Foi uma mesa onde só foi servida groselha, visto que D. Maria das Dores é abstémia. Todavia, no copo dos homens, a groselha aparentava ter um tom bastante mais carregado.
 - MESA DA CULTURA - Nela tiveram assento Vasco, Sargento-Mor Francisco Trás, Fernão, Carmelo Alturas e o poeta António Limões. Esta mesa além de honrar as sardinhas e o resto, contribuiu para animação cultural do arraial desde a abertura. É que Dona Maria das Dores que os conhecia a todos como pessoas bem falantes e muito educadas, os convidou para, cada um à sua maneira, se dirigir em breves palavras aos presentes, solicitação a que corresponderam com natural agrado e por esta ordem: - VASCO: No Convento de São Francisco em Estremoz, venera-se a imagem seiscentista de Santo António em lenho dourado, existente no altar homónimo, situado no lado esquerdo da Capela Maior e já referenciada nas Memórias Paroquiais de 1758. – SARGENTO-MOR FRANCISCO TRÁS: Santo António teve uma brilhante carreira militar póstuma. Começou no 2º Regimento de Infantaria de Lagos, onde foi alistado em 1668, por alvará de D. Pedro II, que em 1863 o promoveu a capitão. Em 1777 foi promovido a major por D. Maria I. Em 1807, por decisão de Junot, foi promovido a tenente-coronel. Com a extinção do seu Regimento, apareceu em 1810 ao serviço do Regimento de Infantaria nº 19 de Cascais no decurso de toda a Guerra Peninsular, o que lhe valeu uma cruz de oiro e a promoção a tenente-coronel por alvará do príncipe regente D. João. A uma brilhante folha de serviço prestado na metrópole, junta-se ainda uma larga participação em guerras nas colónias, pelo que é considerado um militar de carreira. - FERNÃO: Santo António foi um dos intelectuais mais notáveis de Portugal antes de existir Universidade, tendo-se distinguido como asceta, místico, taumaturgo,  teólogo exímio e grande pregador. Um ano após a sua morte foi canonizado pelo papa Gregório IX e é venerado pela Igreja Católica que lhe atribui um extraordinário número de milagres. - CARMELO ALTURAS: A circunstância de o dia de Santo António coincidir com as festas do Solstício de Verão, faz com que seja celebrado em Portugal como um dos santos mais populares, com presença honrosa e permanente na literatura, na pintura, na escultura, na música, na toponímia, no folclore, na arte popular, especialmente na barrística, assim como na literatura oral. – POETA ANTÓNIO LIMÕES: Vou-vos dizer algumas quadras populares alentejanas relativas a Santo António casamenteiro. Eis uma:  “Santo António de Lisboa, / Guardador dos olivais, / Guardai o meu lindo amor, / Que cada vez foge mais.“ / E mais esta: “O sol bate de chapa, / Faz a maçã coradinha; / Tenho fé em Santo António / Que inda hás-de vir a ser minha.“. 
- MESA DAS MULHERES: Liderada por Libertária, ali se encontravam Mofina, Valentina, Maria Machadão e Firmina Tautau. Comeram e beberam moderadamente, mas falaram muito entre si, tendo Libertária proclamado que o amanhã é das mulheres, pelo que para a frente é que é caminho. Todas concordaram e Maria Machadão em sinal de assentamento, pregou tal murro na mesa que entornou os copos todos. Valentina concluiu que não fazia mal, já que o que é preciso é alegria.
- MESA DAS AUTORIDADES: Chefiada por SandeAoCão, o qual se encontrava acompanhado de Vascão e de Patilhas. Com grande desgosto de Vascão, ali teve que se beber com moderação, já que como advertiu SandeAoCão, as autoridades devem ser as primeiras a dar o exemplo.
 - MESA DOS DEVOTOS DE SÃO MARTINHO: Nela se sentaram o sargento Patacão, Chico Pinguinhas, Zé Tretas e Lérias. Por ali a festa foi rija, já que eram como o Jacinto, tanto gostavam do branco como do tinto, além que eram como os da Amareleja, que também gostam de cerveja.
No arraial foram notadas algumas ausências: - O REGEDOR: Que por dever do cargo que tão bem desempenha, se viu mais uma vez forçado a testar a qualidade dos serviços na rota das tabernas do concelho, missão espinhosa em que foi acompanhado por outros destacados elementos da Regedoria; - CARLOS TUNA: Por se encontrar ausente num seminário sobre questões transfronteiriças, numa cidade do outro lado da raia; - LELO: Por ter alergia ao cheiro das sardinhas; - DONA MAGNIFICÊNCIA: Por achar que a rua da Paróquia não é rua que se recomende.
Foi Carmelo Alturas quem lançou o balão de Santo António, no que foi aplaudido por todos. Aproveitou para fazer um improviso sobre a passarola voadora do Padre Bartolomeu de Gusmão e a sua experiência aerostática no Pátio da Casa da Índia em 1709, perante a corte de D. João V. Pilérias, bastante descontraído pelos copos que emborcara, quando ouve falar em passarola, pensou noutra coisa e começou a rir a bandeiras despregadas. Até parecia que lhe faltava o ar. Firmina Tautau viu-se então forçada a levantar-se do lugar onde se encontrava e assestou-lhe um monumental par de tabefes que lhe restituíram a respiração normal.
Já no final do arraial teve lugar o leilão de fogaças. Como habitualmente o leilão foi dirigido pelo Dr. Cruz. Merecem especial destaque quatro caixas de garrafas de vinho, oferecidas por adegas do concelho: - Uma caixa de Vila Tanta Trincadeira da Adega de Portugal Damos, que foi arrematada pelo Xico Pinguinhas, para consumo próprio; - Uma caixa de Quinta do Touro Cabernet Sauvignon da Adega da Quinta do Touro, que foi adjudicada pelo sargento Patacão, para gasto pessoal; - Uma caixa de Herdade das Trevas, Colheita Seleccionada Branco da Adega do Monte das Trevas. Foi arrematada pelo Sargento-Mor Francisco Trás com o pedido expresso de o Dr. Cruz a entregar no Retiro dos Combatentes, numa das suas habituais visitas de conforto espiritual; - Uma caixa de Dona Bia Grande Reserva da Adega de Júlio Castos, licitada por Fernão, que a foi entregar pessoalmente a D. Maria das Dores, a fim de ser leiloada no próximo arraial, o que muito sensibilizou a piedosa senhora, que aproveitou para pedir a Fernão para dar eco de todos os brados do arraial, no jornal onde cronista é.
Hernâni Matos

terça-feira, 12 de julho de 2016

Euro 2016 - Humor

A vitória de Portugal no Euro 2016 deu origem à criação de múltiplos cartoons. Apresentamos aqui e sem comentários, uma selecção de alguns desses cartoons recolhidos na internet. 














































Hernâni Matos

quarta-feira, 6 de julho de 2016

53 – O Aguadeiro - 4


Aguadeiro.
Jorge da Conceição (1963-  ).
Colecção particular.

Literatura Alentejana
Como é sabido o(a) aguadeiro(a) era o homem ou mulher que acarretava água, que vendia nos domicílios ou na rua. Para além disso, no Alentejo também era designado por aguadeiro(a), o homem ou mulher que no decurso das ceifas, distribuía água para o pessoal se dessedentar. Iremos apontar aqui algumas referências literárias a nível de prosa.
No século XIX surgem-nos: - José da Silva Picão - ATRAVÉS DOS CAMPOS (1883): “Lá aliviam a miúde, para dizerem coisas ou para emborcarem golos de água fresca que a aguadeira lhes oferece,…”. - Fialho de Almeida - O AGUADEIRO ALENTEJANO in ÁLBUM DE COSTUMES PORTUGUESES (1888): “- E desta reclusão proposital da mulherinha que se fez dama, e acha que ir à fonte é ocupação imprópria de uma sécia nasceu o aguadeiro da vilota alentejana, o mariola válido e bistrado … e que em vez de cavar nas vinhas, ou de revolver a ferro de arado o esboroento salão dos sobreirais, anda de cachimbinho na boca, o grande relaxado, a apregoar – quem merca a água! – pelas ruelas sonolentas do povo, onde os porcos fossam nas estrumeiras, cigarras chiam, e um velho sino bate as horas, com uma plangência sinistra de tam-tam.”. - Conto O MENINO JESUS DO PARAÍSO in O PAÍS DAS UVAS (1893): “Com o camelo e o árabe, seria uma paisagem tangerina. Substituindo porém o dromedário por um cónego, e o árabe por um aguadeiro vestido de Saragoça, gritando “quem merca água!” adiante dum burro com cântaros de cobre, numas cangalhas de azinho, inesperadamente a feição muda, e não há Alentejo mais típico, nem gravura eborense mais “avant la lettre”. Entretanto o Paraíso de Évora é principalmente notável por três coisas: pelo seu aspecto exterior, pelo seu refeitório e pelos doces.”.
No século XX surgem-nos sucessivamente:
- Fialho de Almeida - Conto AVES MIGRADORAS in AVES MIGRADORAS (1914): “Lembra a rainha Dobrada, esposa de S. M. Termo tinto, dando beija-mão aos aguadeiros.”. - Júlio Dantas - ESPADAS E ROSAS  (1919): “Mas, para Alberto Sousa, como para o inglês Watts, “le paysage seul ne prouve rien”; é precisa a figura humana, o animal, o pormenor etnográfico a comunicar-lhe vida, intenção, movimento, —e assim, nas suas interpretações da écloga alentejana há sempre, ou uma mancha negra e confusa de gado, bezoando, cabritando, tilintando os chocalhos de cobre das Alcáçovas sob a guarda dos alfeireiros e dos rabadões, como no admirável trecho da Feira de S. Lourenço; ou o burro de um aguadeiro, como no Poço de Aljustrel;”. - J.A. Capela e Silva - GANHARIAS (1939): “Começa o martírio da sêde. E os homens pedem em grita a água que chega mórna, e que é ingerida em quantidades inverosimeis, continuamente distribuida pelo aguadeiro.”. - Manuel da Fonseca - CERROMAIOR (1943): - ”A maior parte dos camponeses já havia feito as compras e enchera as vendas do largo. De quando em quando, atraídos pelas gargalhadas dos que estavam de fora, chegavam às portas. O motivo do riso era a loucura mansa do aguadeiro, já bêbado, de fralda de camisa fora das calças, ajoelhado diante do burro. O meu burro é um santo!”. - Virgílio Ferreira - APARIÇÃO (1959): "A feira abriu com grande excitação. Todo o Rossio se iluminou de festa com … solitários vendedores de água com uma bilha e um copo ao lado,…”. - Mário Cláudio - AS BATALHAS DO CAIA (1995): “E impingiam-lhes os talhantes as carnes velhas e nervosas, abasteciam-nos as fruteiras das mais amargas laranjas, forneciam-lhes os aguadeiros a vaza das nascentes dos cemitérios, se não aquela em que haviam malevolamente mijado.”.
Hernâni Matos

sábado, 2 de julho de 2016

Auto do Convento de São Francisco


Convento de São Francisco em Estremoz, nos primórdios do séc. XX e anteriormente
a 1919, conforme datação de obliteração dos Correios. patente no verso.Na época
ainda não tinham sido construídos edifícios encostados ao lado direito do Convento
e não existia ainda o Quiosque Maniés, fundado em 1927. Bilhete-postal ilustrado de
editor não identificado com o nº 2248.

As personagens do auto, em número de quatro, podem ser assim descritas:
- MARIA DAS DORES: Octogenária, pálida e seca de carnes. Viúva dum oficial de Cavalaria, falecido há quarenta anos e cuja memória preserva, trajando luto carregado. Frequentadora assídua da Igreja, onde a prática do culto lhe mitiga as dores que lhe dilaceram a alma e o corpo.
- MARIA DA FÉ: Quarentona, solteira e de têmpera rija, é afilhada de Maria das Dores, a quem presta assistência familiar.
- CRUZ: Devoto e douto historiador de assuntos da Igreja, da qual foi ministro, dignidade de que abdicou por amor a uma mulher.
- MARTIM: Causídico de forte compleição e de sólidas convicções religiosas. Transporta sempre consigo um rosário de marfim, o qual guarda religiosamente num estojo de prata, finamente lavrado.
O enredo desenrola-se há duzentos anos atrás na nossa notável vila. Ao fim da tarde de um dia soalheiro de Primavera, Maria das Dores e Maria da Fé deslocam-se a caminho da Igreja do Convento de são Francisco, onde vão assistir à Santa Missa. Na praça Luís de Gamões e frente à Casa das Leis, atormentada pelo reumático, Maria das Dores é forçada a parar, no que é secundada pela afilhada. A elas se juntam Cruz e Martim, provenientes de direcções diferentes. Qualquer deles cumprimenta as piedosas senhoras, curvando o torso para a frente, ao mesmo tempo que tiram o chapéu da cabeça, em sinal de casta reverência. Decorridos os cumprimentos, Martim pergunta:
- A caminho da Igreja, não é verdade, minhas senhoras? Eu também e julgo que o mesmo se passará com o doutor Cruz.
Este último confirma a suposição de Martim, enquanto Maria das Dores responde:
- É verdade senhor doutor Martim. Aonde é que havia de ir, senão à nossa bela Igreja? Só ali encontro conforto para as minhas mágoas.
Cruz é então levado a dizer:
- Se me permite, Dona Maria das Dores, a nossa Igreja para além de bela e da sua importância em termos de culto, tem uma enorme importância histórica, arquitectónica, escultórica e azulejar. Nela estão sepultadas algumas figuras ilustres da nossa História e apesar da sua frontaria ser setecentista, os primórdios da Igreja remontam a data imprecisa do séc. XIII, já que começou por ser um convento franciscano.
E acrescenta:
- No seu todo, a Igreja reúne em si, a arquitectura religiosa gótica, renascentista e barroca. É de salientar o túmulo trecentista de Esteves Gatuz, a Capela renascentista de D. Fradique de Portugal, o altar-mor de talha barroca e o retábulo com árvore de Jessé em talha policroma. Para além de toda a imaginária religiosa, há ainda a destacar os painéis de azulejos figurativos do séc. XVIII, da autoria do pintor e azulejista alentejano, Policarpo de Oliveira Bernardes.
Maria das Dores contrapõe, dizendo:
- O que é pena é a nossa bela Igreja estar ladeada de casas desabitadas e degradadas, que nunca ali deviam ter sido construídas.
A afilhada alvitra:
- Madrinha, isso é um mal que pode ser reparado. Se as casas estão degradadas, é deixá-las ir abaixo e depois remover os escombros.
Resposta da madrinha:
- Isso é coisa que ainda leva o seu tempo.
A afilhada replica:
- Talvez o Regedor arranje maneira de as casas poderem ser derrubadas. Se o conseguisse, ficaríamos aqui com um belo espaço cívico e cristão, que até podia ser ajardinado e onde as crianças podiam brincar.
Perante tal sugestão, Martim intervém, dizendo:
- Minhas senhoras, eu posso tentar falar com o Regedor, mas para além do meu apoio, diplomacia e empenho, nada vos posso prometer. Têm que reconhecer que é um assunto muito delicado, que tem de ser tratado com punhos de renda. Todavia, creio que em nome da salvaguarda do património arquitectónico com interesse histórico, o Regedor possa arranjar maneira de impedir a feitura de obras nas casas degradadas. Porém, para as demolir, é necessário ressarcir os proprietários do respectivo valor patrimonial. E aí a coisa complica-se, pois a Regedoria não tem nenhuma fábrica de fazer dinheiro e estamos em período de vacas magras. Apesar disto tudo, creio piamente que a ideia de Dona Maria da Fé é uma ideia muito justa e legítima. Daí que possam contar comigo para sensibilizar o Regedor para este assunto.
Em resposta, Maria da Fé diz:
- O Regedor é uma pessoa boa e já tem um lugar assegurado no Céu. Se nos ajudar neste nosso intento, decerto que o Senhor lhe reservará um lugar ainda mais aprazível a seu lado.
Maria das Dores intervém para dar a sua anuência:
- Concordo consigo afilhada e parece que estamos todos de acordo.
O tempo já vai adiantado, pelo que Cruz chama a atenção geral:
- São horas de nos dirigirmos para a Santa Missa, orar e dar graças ao Senhor. Não podemos chegar atrasados.
Martim concorda imediatamente:
- Tem toda a razão doutor Cruz, a Igreja espera por nós.
Dito isto, dali saíram todos em direcção ao Templo vizinho. Martim com a missão de posteriormente interessar o Regedor pela causa que os sensibiliza e anima. Cruz com a incumbência de informar Fernão, a fim de que ele como cronista possa dar eco destes brados, no jornal onde cronista é.

Hernâni Matos

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Ainda a Casa do Alcaide-Mor / Onde a porca torce o rabo


Casa do Alcaide-Mor em Estremoz, situada na Rua do Arco de Santarém, junto
da porta medieval denominada Arco ou Porta de Santarém - Fotografia de
Rogério de Carvalho (1915-1988) de finais dos anos 30 do séc. XX.

Ainda a Casa do Alcaide-Mor
Onde a porca torce o rabo

A antiga Casa do Alcaide-Mor do Castelo de Estremoz foi vendida em hasta pública no passado dia 14 de Maio. Soube-se agora que o pagamento foi efectuado pelo arrematante, utilizando um cheque “careca”. A venda ficou assim sem efeito e a Câmara Municipal de Estremoz na qualidade de vendedora, continua na posse do imóvel.
Na sequência de tão inverosímil acontecimento, foi posta a circular na Internet uma petição cujos subscritores requerem à Câmara Municipal de Estremoz “A anulação imediata da venda do imóvel em causa.“, assim como “A elaboração e implementação de um projecto de recuperação e reutilização do mesmo de forma a contribuir para a preservação da memória histórica da vila medieval de Estremoz, elevada em 1926 à condição de cidade.“ Até aqui tudo bem e por isto eu seria capaz de subscrever a petição. Contudo, acabei por não o fazer, dado que a mesma no seu preâmbulo se refere à “…incúria da autarquia ao longo das últimas décadas em relação aos imóveis históricos que tem à sua guarda e devidamente classificados como bens patrimoniais, e não soube aproveitar, por inépcia, como outros municípios por este país fora souberam fazer, as oportunidades que estiveram acessíveis.”. 
Acontece que usufruo do salutar hábito de pensar, prática que me tem causado alguns dissabores, uma vez que alguns que se consideram bem pensantes, não apreciam muito, já que para nosso mal, consideram gozar do direito exclusivo de ser eles, os bem pensantes. Daí que tenha formulado a inescapável questão: “- Quem é que nos tem governado nas últimas décadas?”. A resposta brotou clara e célere, como água da fonte: “ - 1975-1985 (CDU), 1986-1990 (PS-PSD), 1990-1994 (PS), 1994-2005 (CDU), 2005-2009 (PS), 2009-2016 (MIETZ).” Por outras palavras: todas as forças do arco da governação autárquica local, são responsáveis pelo estado de coisas a que se chegou relativamente ao assunto em epígrafe, já que não tomaram as medidas adequadas que as circunstâncias exigiam.
Curiosamente entre os primeiros subscritores da petição dirigida à Câmara Municipal de Estremoz, figuram nomes de individualidades pertencentes às forças do arco da governação autárquica local. Com tal atitude criticam o passado da força política pela qual terçam argumentos nos pleitos eleitorais. Sou então levado a pensar: “- Têm memória fraca ou em política vale tudo?”. Pessoalmente, integrei durante vários mandatos a Assembleia Municipal em representação da CDU e tanto quanto a minha memória de elefante me permite, não me lembro de em sede própria, as forças do arco da governação autárquica local, se terem debruçado sobre a questão. Como tal e como pessoa de bem, não vou sacudir a água do capote, dizendo que eu próprio não tenho culpa do estado de degradação a que chegou o imóvel. Tenho, como têm todos do arco da governação autárquica local: CDU, PS-PSD, PS e MIETZ. Como a culpa é de todos, não posso desculpabilizar-me da minha quota-parte de culpa, virar a cara para o lado e pôr-me a assobiar como se não fosse nada comigo. Foi o que fizeram alguns dos primeiros subscritores da petição dirigida à Câmara Municipal de Estremoz. Eu não a subscrevi, por não ser pessoa de ter uma perna em Cacilhas e outra no Cais das Colunas, por que me dá jeito assear-me no mar da palha. Todavia, subscrevo algumas das linhas de força do documento que passam pela determinação de manter o imóvel no domínio público, assim como promover a sua recuperação e a sua adaptação a centro interpretativo da vila medieval de Estremoz ou a outra finalidade que tenha a ver com a nossa memória colectiva. Todavia, a vontade cívica não chega. É preciso dinheiro e muito, para isto tudo. Estamos em período de vacas magras e eu pessoalmente não sei, se neste momento é possível extrair leite das tetas da vaca europeia. É aqui que reside o cerne da questão. É aqui que a porca torce o rabo.

Hernâni Matos
 22 de Junho de 2016 
(Publicado no jornal E,
de 30 de Junho de 2016)